Um Stradivarius perdido no Atlântico
No aeroporto de Orly antes de embarcarem Cerdan (à direita) segura no violino de Ginette Neveu
Nesta tarde de sábado de Primavera, estou a ouvir o Allegro Moderato do Concerto para violino em Dó menor de Jean Sibelius, executado magistralmente por Ginette Neveu, uma das maiores executantes de violino de todos os tempos. Tenho o Concerto de Sibelius e a Ginette Neveu na minha playlist e acompanha-me em viagens ou quando me quero concentrar em alguma tarefa. O violino é um instrumento único, tem uma sonoridade gemebunda, algo nostálgica, mas profundamente emotiva.
Comecei a
ouvir falar de Ginette Neveu ainda era criança, teria talvez os meus oito anos,
não pela sua qualidade musical, mas pela história que a envolve. Foi meu Pai
quem me falou de Ginette Neveu. Quando o meu Pai no início dos anos 50 do
século passado se juntou à Air France para trabalhar na sua escala da ilha de
Santa Maria, onde cresci e vivi até aos meus quinze anos, toda a equipa da
companhia Francesa ainda estava abalada pelo recente acidente do voo 009 três
anos antes. Foi um Super Constellation, avião moderno para a época, o primeiro
quadrimotor a hélice de cabine pressurizada. Em Outubro de 1949 o voo
procedente de Paris com destino a New York, despenhou-se no Pico da Vara, ilha
de São Miguel, cerca de sessenta milhas a Norte do Aeroporto de Santa Maria
onde ia fazer escala. Nesse avião viajava Ginette Neveu.
Fim de tarde no Aeroporto de Orly, dia 28 de Outubro de 1949. No check-in da Air France juntam-se os 48 passageiros do voo 009 da Air France. Entre homens de negócios e casais em viagem de lazer, estão duas personalidades famosas em França. Marcel Cerdan, boxeur, amante de Edith Piaff que vai ter com ela a Nova Iorque, para aproveitar com ela alguns dias, antes do seu esperado combate com o Jake LaMotta. Cerdan deveria ter apanhado o barco para atravessar o Atlântico, mas Piaff pede-lhe que vá mais rápido de avião e assim poderão passar alguns dias juntos. (nas cartas de amor trocadas entre os amantes poucos dias antes, Cerdan diz a Piaff…" imagina que sempre que entro num restaurante em Paris põem logo a tocar o La vie en rose"…)
Outra
passageira famosa é Ginette Neveu. Com apenas trinta anos é uma estrela da
música clássica em França. Desde criança que é um prodígio a tocar violino.
Percorreu toda a Europa em tournée e agora vai iniciar a sua primeira grande
tournée na América do Norte. Em Orly, Cerdan fala com Ginette Neveu. Não se
conheciam senão pela fama recíproca. Cerdan pede-lhe para tocar no seu
Stradivarius, dizendo nunca ter tido um nas suas mãos. Tiram uma fotografia com
Cerdan segurando o Stradivarious de Ginette Neveu. Embarcam juntos, mas nunca
chegarão a New York.
Ginette Neveu viaja com o seu irmão Jean que sempre a acompanhou ao piano. Ginette não é casada, nem nunca se lhe conheceu um companheiro. Tem um ar um pouco andrógeno e, não obstante na altura não fosse fácil assumir-se como homossexual, nem haja confirmação de tal opção da violinista, a verdade é que uma amiga que tinha conhecido em Viena poucos dias antes da viagem fatídica, suicida-se depois de ser conhecido o acidente e deixa um bilhete dizendo… "a vida sem ti não faz sentido". A imprensa Francesa chama-lhe a 49ª vítima do voo 009 da Air France.
O voo decorre normalmente em direção a Santa Maria. Tripulação experiente, nenhuma avaria, condições atmosféricas ótimas: visibilidade de 20 km, céu limpo sobre Santa Maria.
A Air France brinda os seus passageiros com o seu afamado serviço a bordo.
O Super Constellation é um avião formidável em conforto e dispõe já de couchettes para descanso dos passageiros. Meia hora antes a tripulação acorda os passageiros para se prepararem para a aterragem em Santa Maria. São cerca de 02.15 h da manhã, hora local. O voo iniciara-se em Paris seis horas antes e tinha autonomia para mais seis horas, mas a escala de reabastecimento é obrigatória para atravessar o Atlântico. O Comandante já tinha aterrado com aquele mesmo tipo de avião por três vezes em Santa Maria. Muitas tripulações preferiam a rota de Shannon na Irlanda por causa do Dutyfree. Era conhecido pelo Aeroporto do Whisky. Em Santa Maria não havia Dutyfree.
A Torre autoriza a descida. O Comandante diz que tem …"airport in sight"…
Não podia ter, estava a 60 milhas a Norte de Santa Maria e as luzes que via na noite, eram da Vila da Povoação então recentemente electrificada e não da pista.
Excesso de confiança? Foi um erro trágico.
Cruzeiro evocativo do local do acidente no Pico da Vara, ilha de São Miguel,Açores
O luto encheu os Açores e a França inteira.
A população da Algarvia no concelho do Nordeste ajudou na recuperação dos cadáveres e no velório que se seguiu. Os corpos foram transportados num avião da Força Aérea Francesa que rumou a Paris com escala em Casablanca onde ficou o corpo do Boxeur Marroquino Cerdan.
A viúva de Cerdan tornou-se grande amiga de Edith Piaff com quem tinha partilhado o seu grande amor. Foram amigas até à morte de Piaf mais de treze anos depois.
Os violinos de Ginette Neveu nunca foram encontrados. A Seguradora Suiça do Stradivarious foi expressamente aos Açores e fez as suas investigações. Em vão … apenas foram encontradas as duas malas dos violinos … vazias. Era um Guadagnini e o Stradivarius. O arco do Stardivatrious foi encontrado algum tempo depois nas mãos de um pescador da zona. O violino esse nunca foi encontrado. Do Guadagnini foi encontrada apenas a cabeça do violino, muitos anos depois no Brasil e entregue ao construtor, durante um programa da televisão Francesa nos anos oitenta, num momento muito emotivo. (ver vídeo no link abaixo)
Está a chegar ao fim a faixa do Allegro Moderato de Sibelius.
O violino que o toca…o Stradivarious esse ficou perdido no meio do mar … na minha ilha.
Lisboa, Abril de 2023
Lopes de Araújo
https://fr.wikipedia.org/wiki/Vol_Air_France_009
https://www.dailymotion.com/video/xjjj1a
Livro "Constellation" de Adrian Bosc