Antes que a cortina se feche Serra da Estrela - Portugal (Agosto de 2022)
Antes que a cortina se feche
"A vida é uma peça
de teatro que não permite ensaios.
Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente,
Antes que a cortina se feche
E a peça termine sem aplausos."
Leio a frase numa rede social
Observo a foto tirada no carro em andamento em plena Serra da Estrela
Apercebo-me da cortina corporizada pelas folhas da árvore em primeiro plano
Mais longe, os contornos da serra, igualmente belos
E o sentimento brotou inspirando-me a escrever para o Desafio Relatos de Viagens 2022
- Olá Mãe? Estás bem?
- Sim, estou.
- Então e a ferida na perna, já está melhor?
- Não sei.
As respostas eram curtas
A voz do lado de lá, embargada
O que me trouxe à memória
Cenas da minha infância
Também eu ficava longe
Em férias, na casa da avó ou das tias
Divertia-me imenso
Adorava a aldeia e os seus ritmos diferentes
Mas sempre que a minha mãe telefonava
Eu não era capaz de falar
A voz denunciava a minha emoção
E eu ficava um bocadinho triste, roída de saudade
Tínhamos tirado uns dias para ir até ao Douro
E o "Amor" ficou n'A Cilinha, a Casa de Repouso
Fica lá sempre durante o dia
Ao fim da tarde, vamos buscá-la
Mas este passeio e a nossa ausência
Impôs que lá dormisse também
Optámos por apanhar o comboio na Régua
E viajar até ao Pocinho
Admirando os contornos do Douro
Foi quando pensei em ligar-lhe
Para saber como estava
Mas a voz tristonha, lá longe,
Tocou-me fundo
Fez com que mudássemos planos futuros
- No próximo passeio, o "Amor" virá connosco, decidimos
Antes que a cortina se feche
E a peça termine sem aplausos
- E eu também vou?
Pergunta tantas vezes repetida pelo "Amor"
Tal qual uma criança
Que não dá ainda a coisa por certa
- Claro que sim
E lá fomos nós três
Mais o neto, o André
Até os cães, a Cookie e o Nougat
Os preparativos foram atribulados
Os medicamentos, a insulina, as fraldas, o aparelho auditivo
- Ai, o perfume!!! (os seus 89 anos ainda o impunham diariamente)
Nada podia ser esquecido
Iniciada a viagem até Tortosendo
O GPS anunciava 2h30 de caminho
Os animais lá atrás,
Sempre tranquilos e colaborantes
- Avó, vamos jogar aos países?
- Bora lá, André
E lá íamos dizendo, à vez,
Países a começar por A,
Países a começar por B ...
Até que, eu
- Desisto, já não me lembro de mais nenhum
- A sério, avó, como pudeste esquecer a Guatemala?
É verdade, como é que eu pude esquecer a Guatemala?
Já tinham sido anunciados a Grécia, as várias Guinés, o Gana
A minha memória traiu-me
Ganhou o André
E o "Amor" lá ia, com a sua paciência
Ouvindo as nossas brincadeiras
Suportando um ou outro encontrão mais efusivo
O seu nome é Rosa
Mas passou a ser o "Amor"
Quando veio viver connosco
De forma espontânea,
Ficou adotado o "nick name" e assim perdura
Chegados a Tortosendo ...
Apostámos em dar-lhe o prazer da comida
Pois, embora diabética,
Nunca se nega a um bom vinho
Nem a uma sobremesa no fim do repasto.
- Um dia não são dias
Antes que a cortina se feche
E a peça termine sem aplausos
E, perante a sua grande dificuldade em andar
E incapacidade de ver
Substituímos as visitas às praias fluviais
Pelo conhecimento transmitido pelos vários museus da região
Visitámos o Museu do Pão, em Seia
O do Queijo, em Peraboa
E o Museu dos Lanifícios, na Covilhã
O "Amor" lá ia ficando no carro
À espera que regressássemos dos museus
O fim do dia era passado no alojamento
Uma quinta com bonitas áreas e recantos
- Avóóóó, aquela coisa molhou-me
Era a rega automática
Três ou quatro pingos na T-shirt
E um André comichoso, a gritar
Enfim ...
Não tomámos banho em lagoas
Nem procurámos cascatas
Não experimentámos baloiços
Nem calcorreámos quilómetros
Mas demo-nos uns aos outros
E vivemos aqueles dias em pleno
Antes que a cortina se feche
E a peça termine sem aplausos
Ana Paula Costa Silva