Antes que a cortina se feche Serra da Estrela - Portugal (Agosto de 2022)               

29-09-2022

Antes que a cortina se feche

"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios.

Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente,

Antes que a cortina se feche

E a peça termine sem aplausos."

Leio a frase numa rede social

Observo a foto tirada no carro em andamento em plena Serra da Estrela

Apercebo-me da cortina corporizada pelas folhas da árvore em primeiro plano

Mais longe, os contornos da serra, igualmente belos

E o sentimento brotou inspirando-me a escrever para o Desafio Relatos de Viagens 2022

- Olá Mãe? Estás bem?

- Sim, estou.

- Então e a ferida na perna, já está melhor?

- Não sei.


As respostas eram curtas

A voz do lado de lá, embargada

O que me trouxe à memória

Cenas da minha infância


Também eu ficava longe

Em férias, na casa da avó ou das tias

Divertia-me imenso

Adorava a aldeia e os seus ritmos diferentes


Mas sempre que a minha mãe telefonava

Eu não era capaz de falar

A voz denunciava a minha emoção

E eu ficava um bocadinho triste, roída de saudade


Tínhamos tirado uns dias para ir até ao Douro

E o "Amor" ficou n'A Cilinha, a Casa de Repouso

Fica lá sempre durante o dia

Ao fim da tarde, vamos buscá-la


Mas este passeio e a nossa ausência

Impôs que lá dormisse também


Optámos por apanhar o comboio na Régua

E viajar até ao Pocinho

Admirando os contornos do Douro

Foi quando pensei em ligar-lhe

Para saber como estava


Mas a voz tristonha, lá longe,

Tocou-me fundo

Fez com que mudássemos planos futuros


- No próximo passeio, o "Amor" virá connosco, decidimos

Antes que a cortina se feche

E a peça termine sem aplausos

- E eu também vou?

Pergunta tantas vezes repetida pelo "Amor"


Tal qual uma criança

Que não dá ainda a coisa por certa


- Claro que sim


E lá fomos nós três

Mais o neto, o André

Até os cães, a Cookie e o Nougat


Os preparativos foram atribulados

Os medicamentos, a insulina, as fraldas, o aparelho auditivo

- Ai, o perfume!!! (os seus 89 anos ainda o impunham diariamente)

Nada podia ser esquecido


Iniciada a viagem até Tortosendo

O GPS anunciava 2h30 de caminho

Os animais lá atrás,

Sempre tranquilos e colaborantes


- Avó, vamos jogar aos países?

- Bora lá, André

E lá íamos dizendo, à vez,

Países a começar por A,

Países a começar por B ...


Até que, eu

- Desisto, já não me lembro de mais nenhum

- A sério, avó, como pudeste esquecer a Guatemala?

É verdade, como é que eu pude esquecer a Guatemala?

Já tinham sido anunciados a Grécia, as várias Guinés, o Gana

A minha memória traiu-me

Ganhou o André


E o "Amor" lá ia, com a sua paciência

Ouvindo as nossas brincadeiras

Suportando um ou outro encontrão mais efusivo

O seu nome é Rosa

Mas passou a ser o "Amor"

Quando veio viver connosco


De forma espontânea,

Ficou adotado o "nick name" e assim perdura


Chegados a Tortosendo ...


Apostámos em dar-lhe o prazer da comida

Pois, embora diabética,

Nunca se nega a um bom vinho

Nem a uma sobremesa no fim do repasto.

- Um dia não são dias

Antes que a cortina se feche

E a peça termine sem aplausos

E, perante a sua grande dificuldade em andar

E incapacidade de ver

Substituímos as visitas às praias fluviais

Pelo conhecimento transmitido pelos vários museus da região


Visitámos o Museu do Pão, em Seia

O do Queijo, em Peraboa

E o Museu dos Lanifícios, na Covilhã


O "Amor" lá ia ficando no carro

À espera que regressássemos dos museus

O fim do dia era passado no alojamento

Uma quinta com bonitas áreas e recantos

- Avóóóó, aquela coisa molhou-me

Era a rega automática

Três ou quatro pingos na T-shirt

E um André comichoso, a gritar


Enfim ...


Não tomámos banho em lagoas

Nem procurámos cascatas

Não experimentámos baloiços

Nem calcorreámos quilómetros


Mas demo-nos uns aos outros

E vivemos aqueles dias em pleno


Antes que a cortina se feche

E a peça termine sem aplausos

Ana Paula Costa Silva