Ria Formosa/Pôr do Sol - Inês Melo e "Memórias" de Cristina Semião

28-05-2022

"Memórias" de Cristina Semião

A escuridão do velório cegava-me,

as paredes do crematório esmagavam-me, as condolências sufocavam-me...

As palavras de todos martelavam-me cá dentro,

como máquinas nas pedras duma calçada

"O tempo cura tudo, vais ver...",

"Um dia de cada vez...",

"Com o tempo vais conseguir esquecer..."

E eu ali, a assentir, muda na voz e na expressão, e a gritar no meu silêncio "

Vocês não percebem??? EU NÃO QUERO ESQUECER!!!"


E fugi!

Fugi para aqui, o único lugar onde quero lembrar-te.

E os martelos lá... 


"Tu és forte!", "Tu vais ultrapassar isto!"

E eu aqui, a sentir-me minúscula, frágil,

insignificante na imensidão do azul carmim que se estende à minha frente.


Está frio, e esta brisa do mar sabe-me bem...

sinto-a picar-me a cara...

subo para cima do capot e o sal do ar mistura-se com o das lágrimas

que se suicidam dos meus olhos sem que as queira parar.


E deixo-me finalmente embalar nas memórias...

lembro-me como nos costumávamos sentar assim,

em cima do carro, ao entardecer, enrolados numa manta,

entrelaçados um no outro, olhando para o infinito do mar,

descontraindo as horas em conjunto.


Eles sabem lá, os martelos,

como bebíamos os sonhos um do outro,

como nos adivinhávamos um ao outro,

como tu eras peça de mim e eu era de ti.


Até que esta semana desististe de lutar,

sem que eu percebesse, sem que eu o previsse,

e o cancro ganhou.

E eu queria que só por um instante,

por um milagre qualquer,

aparecesses agora, aqui, à minha frente,

para te bater! Ou para te beijar!

Ou para te amar... sei lá!