Transições Tranquilas

17-12-2021

Alentejano de quatro costados e descendente de lavradores de há muitas gerações fez pela sua vida o que os seus antepassados faziam bem e com entrega. Nasceu em 1918, num monte perto de Moura e cresceu arrimado à sua convicção de ser único, livre e autêntico. Sem rebeldias, mas com o vasto horizonte e o cosmo entranhado no seu ser, a sabedoria acumulada dos seus ascendentes, assim como a presença de espírito, o bom senso e o humor que o caracterizaram.

Pelos vinte e cinco anos, casou-se com a sua Maria José, de uma aldeia próxima, onde se estabeleceram e tiveram dois filhos, um casal. Como era corrente, uma rapariga foi viver com a família para ajudar a criar os meninos, de seu nome Maria.

Anos bons, anos maus, é sabido como a lavoura então dependia dos conhecimentos empíricos das gentes e muito dos caprichos da natureza, que satélites não havia; sete vezes viu o ganha-pão malparado, sete vezes encarou as adversidades e se levantou, que não era homem de quebrar. Muitos anos de lavoura e de olival, levantava-se consoante os afazeres e a época do ano. Se no inverno, o frio e o braseiro chamavam para dias mais caseiros, no verão, era vê-lo sair às três ou quatro da madrugada para ir buscar os trabalhadores e levá-los para o campo, que a jornada começava cedo, ao primeiro raio de sol, para o descanso nas horas de calor sufocante. A afabilidade e a sua justa medida fizeram dele pessoa respeitada e companheiro prazeroso de muitos momentos em família, no trabalho e no entretenimento.

Sagaz e de humor fino, sempre tranquilo e próximo, era um prazer ouvi-lo contar histórias e anedotas com a sua voz forte e temperada, sempre rodeado da família, de amigos ou vizinhos, ou de todos juntos. A comunidade era o seu princípio de estar, a liberdade e a autonomia a sua essência.

Prole adulta e orientada, a filha casada e a fazer carreira, a trabalhar na capital, o filho no estrangeiro a criar família e o negócio. Vários netos, e conheceu os bisnetos mais velhos. Captando que a sua descendência não singraria na lavoura, e proporcionando a sua Mulher afastar-se da vida de aldeia, deu o primeiro passo de mudança de rota: vendeu quase tudo, ficando com um pequeno monte que reabilitou com os filhos, e o casal foi viver para Azeitão, onde morava a filha e sua família, assim como a Maria que sempre acompanhou a "sua menina". Estava nos sessenta e cinco anos.

Caçador desde sempre, dos que andam à procura (a chamada caça de salto), fez milhares de quilómetros de farnel e cantil, e manteve a atividade e o grupo de companheiros quando deixou o Alentejo, que para todos os efeitos é já ali, que distância nunca é problema para um nascido nas planícies. Adaptou-se a este novo lugar e outros hábitos, e esta foi a sua primeira bem-sucedida transição até ter enviuvado, quando andava pelos setenta e quatro anos.

De acompanhado passou a sozinho, depois de cinquenta anos de vida em comum. Aceitando o que tinha e não o que desejaria, prosseguiu o seu caminho, passou a fazer as refeições, os passeios diários, enfim, criou novas rotinas, sempre focado na sua autonomia e na sua liberdade. Foi à caça até por volta dos oitenta e cinco, os últimos já sem apontar, porque uma dor no ombro o afastou dessa lide. Também alguns companheiros foram viajando, a cumplicidade estava diferente, o sentimento de pertença foi-se diluindo. Nos entrementes resolveu aquelas trapalhadas que se costumam deixar para os herdeiros tratarem. E nova transição preparou, após uns quinze anos desejando um bom dia matinal a si próprio.

Aos noventa e dois decidiu que tinha que experimentar, enquanto estava válido, física e mentalmente, a solução de viver num lar. E foi! Com o apoio dos filhos, da filha no dia a dia e na logística, encontraram um local bem situado, com muito arvoredo e perto do pulmão de Lisboa, quarto privado, e boa vista. Levou o carro, entrava e saía quando queria, estava com a família, fez novas amizades, fazia passeios pelas redondezas, ia à Baixa, assistia a espetáculos de teatro de revista, marco da sua geração, tinha o grupo de almoços dentro e fora da residência, tirava o máximo partido. Mas a vida nestes moldes tem o efeito espelho. E nestes dois anos, impressionado com a demência e a dependência à sua volta, confirmou o que não queria para si: ir perdendo as suas capacidades e a sua autonomia num ciclo fechado. Voltou para casa. E esta é a terceira transição de uma vida feliz. Como frequentemente dizia: "Eu sou feliz. Se vocês são felizes, fico ainda mais feliz, por mim e por vocês".

É nesta altura que a Maria, que também vivia em Azeitão, se reinventou na ajuda preciosa à sua família de dedicação. E passaram a viver os dois na mesma casa, fazendo companhia um ao outro e ajudando-se mutuamente. Mas a solidão das ausências e o que já nos custa fazer, as pequenas diminuições, têm o seu peso. Teve que ser operado, foi ficando mais difícil preencher a alma com a vida. Ficou cansado.

Teve o privilégio de se manter autónomo e clarividente até ao dia em que sentiu que já estava aborrecido demais e o seu coração adormeceu.

Um exemplo de saber ser. De sua graça, José Rafael.


Alexandra Carvalho

Fotografia: Margem do rio Guadiana