Suave milagre?

07-12-2023

"Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um Cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel…

- Mãe, eu queria ver Jesus..."

A voz do narrador lia o conto de Eça em tom monótono, tão monótono quanto o ritmo da estrada nacional serpenteando pela montanha. A chuva passara de intensa a esparsa, o nevoeiro escorregando pelas encostas de árvores mirradas e queimadas dos fogos de Outono.

Como era possível o Eça ter escrito aquela lamechice? O pensamento voara por instantes para a infância na aldeia quando ajudava à missa do Padre Jacinto na noite de Natal. Na altura sabia acompanhar a missa toda, até ao missa ita est

Tempo esse em que a fé não o abandonara, chegara mesmo a pensar no Seminário de onde escapara por uma unha negra para ir fazer o Liceu a cem quilómetros de distância, num quarto alugado, indo parar mais tarde a Coimbra à Rua da Matemática. Com muito sacrifício dos Pais e não menos seu, acabara o curso com nota distinta e ninguém percebia como o tempo lhe dava para tudo, desde empinar as sebentas e os códigos, animar em Maio a queima, namoriscar no Penedo e com muito tinto à mistura, encher de lágrimas o povo na serenata monumental frente à Sé. Nessa altura, já a fé desabara cedendo lugar primeiro aos filósofos, o existencialismo insinuando-se de mansinho, depois Russel e o "Porque não sou Cristão", o marxismo distribuído nos policopiados da Associação passados clandestinamente até à revolução de Abril. Aí acabara definitivamente com Deus.

A mão rolara o botão pelas estações de FM. Agora o Elvis cantava Blue Christmas…na RFM o Baby Santa, na Antena 1 o White Christmas… qual delas a pior. O Natal agora era penoso.

Os filhos queriam que fosse com eles, mas nem pensar. Acham que por se ter mais de sessenta anos já não se pode fazer trezentos quilómetros a conduzir? Ficara no escritório até mais tarde. Nos dias antes do Natal o trabalho aumentava, para depois dar-se algum descanso até ao fim do ano. Os mais novos, esses eram os primeiros a quererem sair, os sócios mais velhos podiam, mas não queriam, sair mais cedo. Já pensara várias vezes deixar tudo, ir jogar golfe e pegar na guitarra fechada há anos na caixa. Mas a casa do Algarve estava vazia todo o ano e desde que o divórcio o surpreendera, depois de trinta anos de casamento feliz, não queria saber de outra companhia senão a do trabalho.

Saíra já da estrada nacional para a estrada secundária que começava a descer para o vale, caminho escorregadio, precipício de um dos lados. A noite caíra de repente e a chuva leve eram agora flocos pequenos de neve. No mostrador tocou o alerta de frio, 1 grau centígrado. Raio de dia para conduzir e raio de aldeia para nascer.

Porquê rumar todos anos àquele fim de mundo onde reconstruíra a casa de granito da família, agora com todo o conforto, para como todas as outras casas que tinha, ser usada apenas uns poucos dias por ano?

Mas os filhos, noras e já um neto insistiram que seria lá a Consoada.

Voltara ao pensamento… esse belo companheiro de viagem. Já não se lembrava nem do Tantum ergo Sacramentum quando o entoava de vermelho e branco segurando a capa do Padre Jacinto. Nem do beijo ao menino, nem do credo, nem mesmo do Pai-Nosso por inteiro. Era-lhe indiferente aliás a existência de Deus, muito mais o Natal e toda essa fantasia aproveitada comercialmente, alimentando a hipocrisia entre os homens. Como desejava chegar a vinte seis de Dezembro…O Natal agora importunava-o, incomodava-o, deprimia-o. Trazia-lhe à memória recordações dos Pais que partiram cedo, da mulher que o deixara sem perceber porquê.

Mudou para a Radio Nostalgia talvez fosse mais adequada…à época. O Frank Sinatra cantava o First Noel. Estavam todos feitos nas playlists…

A neve caía agora mais intensa, apesar de continuar a descer a serra e já se viam as luzes da aldeia.

Aumentou o aquecimento.

Do seu lado esquerdo via já claramente o presépio iluminado em tamanho natural que o Presidente da Junta mandava agora fazer todos os anos, junto à cascata. Quando voltou a olhar para dentro do carro, o para-brisas estava branco, cheio dos faróis do camião que vinha em sentido contrário e fora de mão. Guinou à esquerda e sentiu o carro rodar sobre si precipício abaixo, rodou por milésimos de segundos também a sua vida e o Padre Jacinto, a aldeia e a faculdade, a mulher e a alegria dos filhos e depois… a escuridão.

A erva molhada e as botas grossas refletiam a luz azul dos bombeiros. Ouviu claramente o paramédico dizer: - Cuidado a levantar… está intacto…um milagre!

Abriu os olhos com dificuldade.

Mesmo à sua frente, a olhar para si, estava o Menino Jesus.

Lisboa, Dezembro de 2017

José Lopes de Araújo

(nota: inspirado num facto real que me foi relatado pelo meu amigo Paulo Viveiros)