Os meninos de olhos azuis

04-02-2022

Há quem diga que há três formas de aceitar o que nos é estranho:
1) com a mente, racionalizando,
2) com o coração, amando,
3) com o estômago, sentindo de facto e pondo-nos nos pés do outro.
e que só quando aceitamos com o estômago uma qualquer diversidade ou adversidade a estamos de facto a interiorizar e a aceitar.
Foi com base neste princípio que Jane Elliott, professora primária americana, iniciou uma experiência que havia de mudar a vida de muitas crianças e, anos mais tarde, mudar também a minha forma de olhar o mundo e a de alguns dos meus amigos.

Estávamos em 1968, Martin Luther King tinha sido assassinado, e as disputas raciais nos EUA estavam ao rubro.

Jane Elliott falava da diversidade nas aulas, com os seus alunos de oito anos, mas nesse dia sentiu que não conseguia explicar a razão de Martin Luther King ter sido assassinado e fazer sentir aos seus alunos o peso do racismo.

Foi assim que lhes propôs um exercício que vinha a ser formado na sua cabeça há algum tempo.

Jane decretou que a partir desse dia todas as crianças de olhos azuis pertenceriam a uma classe superior porque eram melhores e mais inteligentes. As crianças de olhos castanhos seriam a classe inferior e iriam usar uma gola para os distinguir, gola essa que lhes seria colocada pelas crianças de olhos azuis.

As crianças de olhos azuis passaram a ter mais privilégios como sentar-se nas filas da frente, ter melhor comida e mais tempo de recreio... e foram encorajadas a não brincar com as de olhos castanhos mesmo que essas crianças fossem os seus melhores amigos anteriormente.

Durante o primeiro dia Jane enalteceu frequentemente as proezas das crianças de olhos azuis e puniu os erros das crianças de olhos castanhos.

Em poucos minutos as crianças consideradas "superiores" tornaram-se arrogantes, mandonas e más para as crianças consideradas "inferiores".

Os seus resultados escolares melhoraram e conseguiram completar tarefas que antes pareciam fora das suas capacidades.

Em contrapartida as crianças consideradas "inferiores" tornaram-se tímidas e subservientes, com piores resultados e com dificuldade em desempenhar tarefas que antes tinham sido simples.


No dia seguinte Jane inverteu o exercício.

"Ontem menti-vos", disse. "A verdade é que as pessoas com olhos castanhos são melhores e mais inteligentes que as de olhos azuis" ... e assim a gola foi retirada às crianças de olhos castanhos e colocada nas crianças de olhos azuis.

Os papéis inverteram-se... os comportamentos e os resultados escolares também..

Jane perguntou "porque é que hoje conseguiram fazer o trabalho tão rápido e ontem não conseguiam?".

"por que tinha a gola metida e não conseguia pensar?", responderam algumas crianças.
No final, Jane parou o exercício e disse às crianças de olhos azuis que podiam retirar a gola e deitá-la no lixo, o que fizeram com grande alívio.


Jane pediu às crianças que refletissem no que tinham aprendido

"Como se sentiram?"

"Como um cão num canil...como numa prisão e que alguém atirou fora a chave..."

"Devemos julgar uma pessoa pela cor dos seus olhos, pela cor da sua pele...?", perguntou

"Não!" diziam todos

"Não se julga uma pessoa pelo seu exterior", pedia Jane para que repetissem e eles repetiam agora sim verdadeiramente convencidos.

As crianças foram incentivadas a escrever uma carta a Coretta Scott King, a viúva de Martin Luther King, e a fazer uma redação descrevendo o que sentiram durante a experiência.

Esses relatos poderosíssimos foram compilados num documento que foi publicado no jornal "Receville Recorder" sob o título "Como é sentir a discriminação".

Anos depois as crianças agora adultos e alguns pais, foram convidados pela sua professora a reviver a experiência, vendo o filme documentário e a discutir o impacto que essa experiência teve nas suas vidas, no seu olhar sobre o mundo e na forma como viam a educação das suas crianças. O impacto dessa experiência perdurou e passou gerações!


O que é incrível é que todos os dias há pessoas que são discriminadas, por racismo, sexismo, idadismo, .. pessoas que por sentirem "uma gola no pescoço" acabam por se comportar como se fossem seres inferiores, e pessoas que aproveitando esse facto desrespeitam, dominam, abusam.


Fico a pensar na prece dos índios Sioux que faço por ter presente na minha vida:

"Oh grande espírito, ajuda-me a não julgar um homem antes de ter caminhado uma milha nos seus moccasins" (1)

Hélia Jorge

Para quem quiser ver o documentário
https://www.youtube.com/watch?v=Rx_Lb-5G2Lg
https://www.youtube.com/watch?v=zwHadEXkbyw



(1)