Invictus

23-06-2022

I am the master of my fate: / I am the captain of my soul. 

Eu sou o senhor de meu destino; / Eu sou o capitão de minha alma.


Nasci em casa. Na altura era comum chamar uma parteira quando chegava a hora H.

Nasci com os olhos vermelhos e toda a vizinhança sussurrava que era um mau sinal. Podem pensar que a cor foi mudando. Estão enganados! Continuavam vermelhos. A minha mãe entrou em desespero e decidiu ir a Santa Maria Adelaide em Arcozelo, perto do Porto. Embora não reconhecida pela Igreja, é grande a devoção popular que atesta muitos milagres. Não sei se foi milagre, mas a minha mãe declarou que no regresso os meus olhos tinham ficado normais.

Costumávamos ir para Espinho, onde o mar é o mais perigoso que conheci. Ficávamos sempre no bairro dos pescadores, que alugavam as suas casinhas para juntar algum dinheiro para o Inverno. A hora do banho era um tormento porque o banheiro era contratado para nos dar uns mergulhos forçados em ondas de gelar os ossos. Uma vez ia morrendo porque fui enrolada numa onda enorme, mas nunca ganhei medo ao mar.

O meu irmão tinha raquitismo e a minha mãe nunca desistia, era uma guerreira. Lá fomos todos para um hospital perto do Porto, e demorou mais tempo, mas ficou curado e as perninhas tortas ficaram perfeitas. À vinda, passámos pela capelinha de S. Maria Adelaide. Fiquei aterrorizada ao olhar para a "santa em carne" mumificada que fora protegida por todo o povo contra vários ataques pela calada da noite.

Portanto, tivemos uma infância ligada ao norte e foi lá que os nossos problemas físicos foram vencidos.

Depois de contar dois episódios de superação familiar por a minha MÃE ser INVICTA, vem a razão do título Invictus.

Nesse tempo a minha aldeia era mesmo uma aldeia aprazível. É atravessada por uma ponte romana onde corre o rio Pavia. Havia muitos moinhos e moleiros com cereal a ser transformado na mó de pedra, à antiga. Havia também muitas padeiras com fornos a lenha e a broa e a sêmea eram famosas pela sua qualidade ímpar.

O Rio Pavia, que viu nascer a cidade de Viseu "VISSAEIUM" no tempo dos Romanos, também viria dar origem às Cavalhadas e à própria Vila de Moinhos, atual Vildemoinhos, com 43 moinhos movidos a água.

Reza a história que, em 1652, os moinhos existentes ao longo do rio Pavia estavam parados, porque a água do rio não corria. A responsabilidade seria dos agricultores, que para proverem às suas necessidades de rega, fizeram açudes e represaram a água. Os trambelos (habitantes de Vildemoinhos) necessitavam da água como de pão para a boca.

O diferendo originou tumultos vários. Sem resolução à vista, os moleiros, na noite de São João, a pretexto de o festejarem, reuniram-se pela madrugada na capela de São João da Carreira, rogando-lhe que desse ao Pavia um volume de água suficiente para todos.

Foram também rio acima e destruíram os açudes e puseram de novo a água a correr. Assim, os moinhos tornaram a moer e estava assegurado o sustento deste povo. Os proprietários reclamaram ao juiz e, após vários recursos apresentados, as autoridades de Lisboa deram razão aos moleiros. Estes deliraram de entusiasmo e resolveram ir, na noite de 23 para 24 de junho, em luzida cavalgada, a São João da Carreira, agradecer ao santo. Para isso vestiram os seus melhores fatos, enfeitaram de fitas os burros, mulas, garranos, carroças, carros de bois e cavalos e, levando à frente um grande "Estrondo", puseram-se em marcha, com todos os seus serviçais atrás deles, armados de alavancas, sacholas e roçadeiras. A partir desta data, os trambelos agradecem a São João e festejam todos os anos com as Cavalhadas.

Nos tempos de hoje, continua a cumprir-se a "Promessa". No dia 24 de Junho, perfazendo este ano a "370ª Cavalhada". Bem cedinho, Alferes de bandeira em riste e os dois mordomos, continuam a ir a cavalo, agradecer a S. João, dando três voltas à sua Capela.(1)

O meu irmão tinha muitos amigos na aldeia e adorava as Cavalhadas e sempre foi Mordomo (lado esquerdo da fotografia). Eu desfilei em carros alegóricos, vendi manjericos, comi sardinhas e bifanas com broa e diverti-me no arraial. Agora, custa-me muito assistir por não ver o meu querido irmão. Mas continuo INVICTA!


Que cheirinho a manjerico

Do meu rico São João!

As Cavalhadas de Vildemoinhos

Têm broa e vinho do Dão. (1)

Maria de Lurdes Aleixo


Fontes: 1. Poema Invictus by William Henley; 2. Adaptação de um artigo do jornal Notícias de Viseu


Nota: O Cortejo Das Cavalhadas De Vildemoinhos É Candidato Às 7 Maravilhas Da Cultura Popular