Eurico, o presbítero – o meu primeiro romance veio pela rádio
Que livro é este? É poema? É crónica? É lenda romântica? Segundo avalizadas opiniões será todas estas coisas e ainda mais. Dizem mesmo, à cerca do seu autor Alexandre Herculano, que ele terá sido percursor quer no romance histórico, quer no romantismo, em Portugal. Há mesmo quem considere Eurico como o primeiro super-herói luso.
Mas deixemos estas considerações para os entendidos. Então qual a razão de trazer à colação este livro cuja primeira edição nos separa por mais de duzentos anos? Essa edição terá sido em 1844.
De verdade o livro não chegou a mim pela via tradicional. Ele chegou-me pela via radiofónica, em teatro da antiga Emissora Nacional, não teria eu completado ainda dez anos de idade.
Porventura já nos tenhamos esquecido, ou sequer tenhamos vivido as décadas em que, as novelas pela rádio, chegaram a ter a liderança do entretenimento popular internacional. Lembremo-nos do episódio de "A guerra dos mundos" pelo extraordinário Orson Welles.
O livro de Eduardo Street (O Teatro Invisível. História do Teatro Radiofónico) diz-nos que foi na Emissora Nacional, no seu ano experimental (1934), que o teatro radiofónico se consolida. Ao longo de 70 anos de teatro radiofónico, e num total de 237 folhetins, Alice Ogando foi a campeã da adaptação de romances a folhetins), seguindo-se Odete Saint Maurice, Judite Navarro, Ema Paul e Botelho da Silva e Álvaro Martins Lopes. Dos autores representados, Camilo Castelo Branco vem à frente, acompanhando-o Alexandre Dumas, Walter Scott e Charles Dickens. Júlio Dinis e Alexandre Herculano. Pelos autores, consegue-se perceber quais as estéticas políticas preferidas. No mapa das figuras pioneiras, destaque ainda para Olavo d'Eça Leal (1908-1976), poeta, dramaturgo, locutor e escritor de teatro, que criou a personagem Octávio Mendes (Mendes), que o acompanhou em trinta anos de diálogos. E Jorge Alves (1914-1976), que começara no Rádio Clube Português. Com Jorge Alves nasceram os primeiros folhetins e os indicativos de cada programa, que alertavam os ouvintes para a sua transmissão. Assim como Álvaro Benamor (1908-1976). No livro são evocadas outras vedetas – as vozes da rádio, de que se destaca a primeira locutora da Emissora Nacional, Maria de Resende, a qual ainda escreveu versos e contos. Mas há muitas outras vozes lembradas no livro, tais como Manuel Lereno (1914-1976), Carmen Dolores (1924), Rui de Carvalho (1927), Eunice Muñoz (1928) ou Canto e Castro (1930-2005).
O livro, pela voz dos mais talentosos atores de teatro dessa época, foi-me injetado nas veias, de tal forma que para ouvir todos os dias religiosamente o evento, tinha acesas disputas com meus pais dada a hora tardia um que os episódios eram transmitidos. Tenho para mim que essa narrativa moldou indelevelmente forma o meu caracter, tal a recorrência com que a recordo.
Este vale a pena ser lido por muitos motivos, dos quais destaco: ser um misto de tragédia e epopeia, a sede de vingança de alguns personagens, as aventuras cavaleirescas e choque estre o espiritual e temporal, o diálogo dramático e vertiginoso, a descrição minuciosa de exteriores e interiores que nos facilita entrar nos espaços e acentua a ação das personagens e uma linguagem poética, cheia de nobreza.
A grande beleza narrativa está na forma como, através das suas personagens, em especial Eurico, Hermengarda e Flávia, combina epopeia, romance quer numa vertente histórica, quer na forma romântica, conflitos sociais, lenda e poesia provocando a nossa imaginação de forma admirável levando-a visionar a sociedade portuguesa da época, da qual somos herdeiros já longínquos.
O livro está disponível na Internete e também em audiolivro, no site https://www.youtube.com/watch?v=rlEIGj89TGo
Lembrando aqui o inesquecível António Silva no filme "O Costa do Castelo" numa simples explicação, feita da forma exuberante com que nos habituou, acaba por dar a melhor definição de rádio que já se ouviu:
"E isto toca?" – Alguém terá perguntado - "Se toca! Liga-se à parede e é uma torneira a deitar música!". Simples, mas genial. Para mim a radio jorrava também literatura.
É difícil saber como interessar os jovens na leitura, mas levem-nos a ver, ouvir e ler. Eles saberão como absorver a experiência, cada um a seu modo.
Fernando Guedes Pinto, agosto 2024