Anacleto e Pancrácio
Adoram contorcer-se e bicarem-se. Não falam, e aparentemente não se relacionam comigo. Mas fielmente, de manhã, esperam-me, e esperneiam quando me atraso, e não vocalizando, mostram bem a sua ansiedade e urgência esbugalhando ainda mais os olhos e fazendo boquinhas.
Brincam todo o dia, fazem quilómetros, maratonas de atividades, e só ao fim do dia parecem acalmar. Têm crescido, um mais do que o outro, apesar de eu ter o cuidado de repartir a ração por igual, muitas vezes com alguma dificuldade. Mas sendo parecidos, não devem vir da mesma fornada, serão talvez primos em quarto grau.
Têm várias madrinhas para as ausências, mas são os seus filhos que por norma cuidam deles. Parecem não se incomodar com as viagens, e quando telefono a saber se estão bem e não estão a incomodar, a resposta é, invariavelmente "estão ótimos, podem cá ficar o tempo que quiseres, não incomodam nada". Os felizardos! Cama e roupa lavada, e comidinha na hora.
Acompanhamo-nos há um ano, o que me motivou a escrever. Um ano é importante: é que ninguém sabe a idade deles. Mas também não estão certamente preocupados: viver não tem medida, nem tempo.
Quando trabalhava, estiveram presentes em cima do tampo da secretária, não estes, outros, e eram cumprimentados pelos meus colegas. Agora estão em cima de uma mesa da sala, e enquanto estou entretida a viver, lá estão eles a enviar raios de cor e de movimento. Os sons parecem alertá-los e reagem. O bailado é muito atrativo e com a luz produz imagens invulgares, parece que há espelhos, e em vez de dois passam a três ou quatro, mais pequenos ou maiores, mais abaixo, mais acima, lado a lado ou isolados. Ilusões reais.
Apresento-vos os peixes cometa. Também povoam o céu.
Alexandra Carvalho
Cascais, 17 de outubro de 2022
Fotografia de Alexandra Carvalho