A mim o fizeste

25-08-2021

Há sempre uma primeira vez, e esta é a primeira das minhas reflexões aqui na Transições.

Sugeriram-me que partilhasse algo sobre a minha experiência de voluntariado assim que falei num dos projetos que me é mais caro, o de ter contribuído para ajudar a Congregação das Irmãs da Apresentação de Maria na construção de duas escolas na província de Nampula, em Moçambique. A primeira em 2017 e a segunda que deverá estar pronta a ser utilizada no início do próximo ano letivo de 2022. Chamámos ao projeto "a Mim o fizeste" e pelo caminho criámos um programa de apadrinhamento de crianças e enviámos material escolar para ajudar a Irmã Teresa, desta congregação, a tornar a sua missão de vida um pouco menos difícil.

Não sendo um especialista em voluntariado gostaria de partilhar alguns pensamentos sobre este tema... na expectativa que possa contribuir para ajudar a que outros possam abrir mais uma porta nas suas vidas, para uma daquelas experiências em que trazemos connosco muito mais do que o que deixamos com quem teve a humildade de pedir a nossa ajuda.

Querer mesmo fazer voluntariado?... Não sendo especialista, há alguns comentários que creio serem importantes ter em consideração no que é a adequação de cada um a um compromisso desta natureza. Temos de ter em conta que há muitas coisas que nos podem motivar a aderir a um projeto de voluntariado... a vontade de ajudar com quem nos cruzamos, a identificação que sentimos com o desafio que encontramos, a disponibilidade para sairmos da nossa zona de conforto do dia a dia, ou a satisfação pessoal que queremos atingir com a nossa participação... mas também há dias em que as escolhas que fizemos parecem não fazer sentido, em que gostaríamos de aliviar a carga que assumimos, em que o que esperam de nós não é compatível com o que podemos dar ou em que o peso da responsabilidade da escolha que fizemos quase que nos esmaga. É importante, por isso, ponderarmos bem ao aceitar ou lançar um projeto de voluntariado. Ter em conta se queremos e podemos estar num projeto de curto prazo com contribuições pontuais ou se queremos entrar num projeto continuado ao longo do tempo, se queremos apenas contribuir ou se não podemos deixar de liderar para atingir os objetivos. Não me interpretem mal... quem me conhece, sabe bem que acho que é muito ténue a fronteira entre a coragem e a inconsciência... e eu considero-me muito pouco corajoso... mas creio que num compromisso que é importante para a vida dos outros, como o de querer fazer voluntariado, temos de conseguir viver em consciência com a escolha que fazemos.

Foi o que me aconteceu com o projeto que me desalojou e onde a inconsciência levou a melhor sobre a coragem para o abraçar... o desafio era simples... através das Paróquias de Azeitão liderar um projeto para ajudar a Irmã Teresa, uma missionária como tantas outras, que sendo o carisma das Irmãs da Apresentação de Maria o de promover a educação de crianças, a construir uma escola em Corrane, a 80km de Nampula (embora por lá a distância não seja medida em quilómetros, mas em tempo que se demora a percorrer em cada altura do ano), para servir perto de 300 crianças que aprendiam sentadas no chão e com um teto de colmo numa construção que não resiste ao passar das estações de cada ano. A generosidade de quem se empenhou e permitiu angariar em alguns meses perto de 35000 Euros e ajudou a que as Irmãs conseguissem construir a escola, onde cada tijolo foi feito manualmente no local, seco ao sol e guardado pela população de dia e de noite, onde as carteiras foram desenhadas pelas crianças que as iam utilizar, onde o que o foi doado e enviado permitiu que muitas das crianças possam ter uma simples mochila onde guardam o material escolar que foi oferecido. Foi uma experiência gratificante a de poder acompanhar a construção gradual da escola, os testemunhos e fotografias que foram sendo partilhados, os desafios que foram surgindo na angariação do que era necessário, os telefonemas e emails da Irmã Teresa que quando começavam com "Sabe Sr. Gonçalo..." anteviam que aquela coisa da inconsciência do compromisso assumido voltava a estar presente, e finalmente o poder ter a graça de me deslocar a Moçambique para a sua inauguração. Hoje, as Irmãs estão já a terminar uma nova escola, desta vez em Nampula, para a qual também contribuímos, mas nunca me hei de esquecer da inauguração da escola de Corrane, a 13 de Outubro de 2017. Ficou marcado na minha memória a cara das pessoas que nos receberam, sem perceberem bem porque tínhamos ajudado sem nada pedir em troca, a aldeia à nossa espera sem entender porque é que tínhamos percorrido mais de 11000 km de distância e mais de 2h30 de estrada picada entre o pó, o calor e os mosquitos, para poder testemunhar a alegria das dezenas de crianças ao entrarem nas salas pela primeira vez... dos seus sorrisos e do seu olhar... de se sentarem cinco, seis... onde só deviam caber dois, e a missa que antecedeu a abertura em que cada uma daquelas pessoas nos quis entregar como agradecimento um pouco do que tinha... do que nada tinha... um cacho de bananas, um pouco de mandioca, amendoins, cajus, dois pombos, uma galinha... uma senhora com mais idade que veio com um sorriso entregar-me uma moeda que trazia entre as suas mãos curtidas pela vida dura de quem nada espera e que pelo olhar pouco mais tinha para dar. Nessa manhã, a Irmã Teresa tinha-me dito em jeito de preparação, e naquele seu modo, "Sr. Gonçalo prepare-se para descer fundo, muito fundo"... mas mal imaginava o turbilhão de sentimentos que um desafio casualmente lançado meses antes para me juntar a este projeto me fez sentir... a descoberta maior do que o voluntariado pode significar, o recebermos incomparavelmente mais do que o pouco que deixamos, o tocar no fundo do que somos na tentativa de melhorar a vida do outro... como disse Helen Keller ... "Many persons have a wrong idea of what constitutes true happiness. It is not attained through self-gratification but through fidelity to a worthy purpose."... Quem sabe se quem ler este artigo não consegue entrever felicidade através de uma causa justa como a do voluntariado...

Gonçalo Costa Andrade