A Ilha do Tesouro

09-05-2024

Nasci nos Açores, na ilha de São Miguel freguesia de Feteiras no ano da graça de 1957, nas fraldas do vulcão das Sete Cidades. Mas desde a primeira semana de vida e até aos meus quinze anos vivi no Aeroporto de Santa Maria a 57 milhas marítimas a Sul de São Miguel, Aeroporto onde meu Pai trabalhava.

Santa Maria nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado era conhecida pelo seu gigantesco Aeroporto Internacional construído pelos Americanos na segunda guerra mundial, autêntico porta-aviões do Atlântico Norte entre as Américas e a Europa e ponto obrigatório de escala para reabastecimento dos aviões a hélice, no boom da aviação comercial do pós-guerra.

Nasci, pois, em São Miguel na Rua da Igreja 15, paredes meias com a torre da Igreja que nas Feteiras é diferente de todas as outras da ilha, porque a torre fica no lado oposto ao adro e à entrada principal. Nasci na casa do meu avô Raposo, conhecido como Sr. Raposinho, comerciante respeitado que não cheguei a conhecer. Uma casa grande secular, como dizia Régio... "cheia dos maus e bons cheiros das casas que tem história...cheia de sol nas vidraças e de escuro nos recantos". Nasci no quarto de cima, na mesma cama em que nasceu minha mãe que hoje teria 104 anos (faleceu com 96) e igualmente a minha irmã que nascera apenas dois anos antes de mim.

As Feteiras, a apenas quinze quilómetros da cidade, pareciam-me em criança muito longe da sede de concelho. À cidade só se chegava na camionete do Martins ou no carro de praça do Sr. Carlos. Uma eternidade...quer se fosse pelo ramal e pela estrada principal, quer se subisse a freguesia pela rua principal, toda em terra, até à vigia da baleia, já que as Feteiras só receberam o alcatrão e a eletricidade depois do 25 de Abril.

A minha infância foi na verdade como disse passada em Santa Maria, mas as férias grandes de todos os anos passava-as na casa das Feteiras, correndo entre os buchos da quinta, comendo uvas na terra da Lomba, indo fazer recados à loja do João Rodrigues ou a casa de Mestre José Cadime onde ficava a vê-lo trabalhar, fazendo portas, bancos de cozinha e caixões forrados a tecido, lá para as bandas do cemitério a caminho do porto.

Passávamos os serões em casa a jogar cartas e damas, à luz de petromax e dos candeeiros de petróleo. A velha Ângela empregada da minha avó cozia pão todos os dias de madrugada no forno de lenha e fazia-nos uns bonecos de massa sovada (espécie de pão doce tradicional dos Açores) a que introduzia detalhes anatómicos, mas artísticos, que permitiam distinguir claramente a quem pertencia o bolo, a ser comido já pela manhã com queijo da ilha e café de cevada na grande cozinha envolta em cheiro de lenha e de pão fresco.

Durante todo o ano em Santa Maria, contava os meses e dias para ir no Verão para a casa das Feteiras, sempre na excitação do regresso a São Miguel e à casa onde nascera.

Pelos meus oito anos comecei a ler regularmente ficção. Em Santa Maria o entretenimento era escasso. Não havia televisão nas ilhas. Para além da rádio e das brincadeiras de rapaz e uma ou outra ida à matiné no Atlântida Cine, restava a leitura. Foi por essa altura que com enorme prazer li Daniel Defoe do Robinson Crusoe, o Coração de Edmundo d'Amicis ou o David Copperfield de Dickens. Estas leituras eram recomendadas pelos meus Pais e recordo-me de os ler em edições de capa dura creio que da Bertrand que continham alguma banda desenhada de permeio para estímulo dos leitores mais jovens.

Mas rápido os clássicos perderam para a Enid Blyton nas aventuras dos Sete e em especial dos Cinco, devorados de uma ponta à outra horas a fio. Aí a minha imaginação de criança viajava com os jovens aventureiros e o cão Tim, na excitação dos saborosos lanches que levavam nas expedições, enfrentando ladrões e contrabandistas, nas noites em que fugiam de casa e acabavam presos em grutas, nos Cinco no Lago Negro, nos Cinco na Torre do Farol ou nos Cinco voltam à ilha.

Nesse Verão de 66 voltei à ilha, mas a que me vira nascer.

Quando cheguei à casa das Feteiras que estivera fechada o ano todo, fiz uma primeira volta de reconhecimento enquanto os mais velhos desfaziam as malas no quarto do fundo e preparavam a cozinha e os quartos para a prolongada estadia de veraneio.

Eu tinha preferência por alguns locais da casa. Um deles era a sala de cima com a varanda virada ao mar, onde sentado de pernas cruzadas na cadeira de baloiço do meu avô, deixava o olhar passar pelo telhado do granel e pelas copas das árvores da quinta e estendia-o pelo azul imenso virado a poente. Aí via passar os barcos mesmo junto à costa muito lentamente, um ou outro cargueiro, pescadores ao anoitecer na faina a partirem para o mar e de quando em vez uma patrulha da Armada ou navio militar estrangeiro. Pegava nos pesados binóculos de metal e pele que estavam no escritório e que tinham pertencido a um navio Francês, segurava uma baioneta de ferro que encontrara junto aos binóculos e olhava para bordo das embarcações onde na minha imaginação, antevia ladrões e contrabandistas.

Já tocavam as trindades na torre da Igreja que estava mesmo ao lado do balcão da Casa e como anoitecia tarde, ainda dava para correr pelas escadas de pedra abaixo, atravessar os buchos e descer a escadaria de pedra inclinada que dava acesso à quinta, onde as figueiras carregadas e os grandes castanheiros, lançavam sombras aterrorizadoras nos meus olhos de criança. Percorria a quinta vendo os araçais ainda verdes nas árvores, as macieiras com frutos pequenos, os cheiros de plantas e árvores, as altas anoneiras no limite da quinta. Depois o silêncio do fim do dia apenas cortado por um cão que ladrava e ao fundo o som da água da grota que corria ali ao lado para o mar.

Ora nessas férias grandes, descobri no escritório do meu avô uma estrela de David e livros que não compreendi na gaveta do fundo da secretária, encontrei um revolver verdadeiro, mas enferrujado, igual aos dos cowboys dos filmes, material que ao ser por mim mostrado aos mais velhos me valeram repreensão por andar a mexer nas coisas do avô Raposo que nem sequer chegara a conhecer.

Mas dos vários locais da minha preferência havia um onde não conseguia entrar. Era a adega, por baixo da casa, estava sempre fechada e só abria para a vindima em setembro. Estava proibido de ir brincar para lá. Era na verdade um lugar escuro e frio que cheirava a vinho e a madeira envelhecida, cheio de pipas, uma grande prensa e medidas de madeira e metal do tempo da loja do meu avô.

Naquele dia meu pai depois do almoço lia o jornal, ainda sentado à mesa do quarto de jantar que dava para o balcão. Minha mãe estava na cozinha e minha irmã mais velha do que eu, conversava com a minha prima que passava sempre férias connosco, conversas onde eu nunca participava…

Era uma tarde quente de Verão. Daquelas tardes de calor húmido da ilha, onde tudo parece adormecer. Não se via ninguém na rua e a população parecia esconder-se em casa na sombra das casas de pedra de paredes largas.

Foi nesse dia que desci do balcão para junto da palmeira e esgueirei-me na direção da adega, apostado definitivamente em lá entrar. Saltei para cima de uma pedra saída na parede coberta de hera e tateei por cima do portão. Estava lá a chave. Uma chave grossa de ferro com uma argola grande enferrujada. Estava aliás no sítio mais provável de se encontrar e o menos indicado se alguém na verdade a quisesse esconder. Estava ali na minha mão.

Olhei em volta, mas não vi ninguém da família. Rodei a chave e empurrei a porta. Tive dificuldade em os meus olhos se habituarem à escuridão fria da Adega. Abri mais um pouco a porta para deixar entrar o sol. A parede de pedra solta, tinha várias prateleiras atulhadas de alfaias agrícolas, várias caixas de madeira e objetos vários. Maís do que adega parecia também uma arrecadação de coisas da loja de meu avô, provavelmente ali amontoadas desde a sua morte uns vinte anos antes. Subi para um banco de madeira e tirei uns livros velhos creio que da contabilidade da loja, um almanaque de 1950, medidas da mercearia. Os meus dedos enrolaram-se em teias, mas não vi qualquer aranha por perto e a excitação do desconhecido deitou para trás qualquer receio. Tateei uma grande caixa de madeira escura. Tentei puxá-la, mas era pesada e de madeira grossa. Voltei a arrastá-la e deixou no ar uma pequena nuvem de Pó. Agarrei-a pelos dois lados e desci com cuidado do banco. Era muito pesada. Coloquei-a no chão e o sol bateu-lhe de frente. Tinha apenas um ferrolho à frente que cedeu sem qualquer esforço. A caixa abriu-se e estava cheia de moedas que não reconheci. Eram moedas grandes com a coroa Portuguesa. Descobrira um tesouro…

O coração batia rápido de excitação. Peguei na caixa e subi as escadas do balcão e levei-a ao meu Pai, receando nova reprimenda. Meu Pai ficou ainda mais surpreendido do que eu e a surpresa foi tão grande que esqueceu a repreensão por eu ter entrado na Adega. Era uma coleção de moedas de meu avô Raposo, as mais antigas datavam do tempo da dominação Filipina e a quase totalidade era da monarquia, Dom Luís, Dona Maria, algumas poucas da República. Entre elas estava uma muito rara que guardo comigo. É uma moeda do século XVI cunhada manualmente com o Açor, de bordo irregular feita com o bronze derretido dos sinos de igrejas da ilha Terceira quando Dom António Prior do Crato nela se refugiou para resistir à dominação Espanhola e onde foi aclamado Rei de Portugal. A ilha Terceira foi então (1582) a única parcela do País que permaneceu Portugal independente e soberano depois do desastre de Alcácer Quibir e da consequente dominação Espanhola.

No dia seguinte fui com meu pai à cidade. Ele ia a Ponta Delgada uma vez por semana tratar de vários assuntos e ver os amigos. Parámos na Livraria do Bureau Turismo a cumprimentar o amigo Silva Júnior.

Meu Pai comprou um livro e ofereceu-mo.

Era "A ilha do Tesouro".

José Maria Lopes de Araújo

Lisboa, fevereiro de 2024