Um Banho e vida de cão

Um banho e vida de cão…
Não se conhece uma cidade numa primeira visita. Quando pela primeira vez visitamos um novo destino, não resistimos a preencher os dias com as visitas aos locais icónicos e recomendados pelos guias turísticos ou pelas publicações especializadas. Mas, numa segunda ou terceira visita, é quando livres desses roteiros turísticos, podemos andar sem destino pelas ruas, metendo o nariz em becos e ruas estreitas, entrando no comércio local e falando descansadamente com os seus habitantes. É assim que sabe bem num sábado de manhã perdermo-nos na Chinatown, de Nova Iorque, a ver as montras cheias de produtos exóticos do Oriente, os restaurantes com os seus balões tradicionais, os talhos com as carnes expostas, para logo atravessando Canal Street, entrarmos em Little Italy, com a toda a alegria e vivacidade italianas entre a restauração e a mercearia, com massas de todas as cores e queijos gigantes expostos, enchendo o ar de cheiros apetitosos. Mas, se for em Paris, já não nos atrai a Torre Eiffel, nem os Campos Elísios, antes as livrarias e os bouquinistes da margem do Sena, ou passearmo-nos no mercado Royal de Saint-Michel, ali ao sábado de manhã, desde 1755, por entre os legumes frescos e o paraíso de queijos e chocolates vendidos ao peso. Tomar pela manhã um cappuccino acompanhado da leitura do Le Monde, na esplanada do Café de Flore e observar os passantes, ou visitar os jardins escondidos, como o Parc Chaumont ou a Promendade Plantée, o jardim suspenso de Paris.
Ora eu, que levei uma vida inteira a viajar por gosto e também por dever profissional, um pouco por todo o mundo, só há meia dúzia de anos visitei, pela primeira vez Istambul, essa fascinante cidade onde a Europa e a Ásia se encontram. E claro lá cumpri os percursos turísticos de visita à Hagia Sophia então ainda museu, mas já com inscrições do Corão, a anunciar o que viria a acontecer a seguir, com a passagem a Mesquita, seguida da descida à cisterna da Basílica, mais a ida à Mesquita Azul e ao Palácio Topkapi, compras no gigantesco Bazar e o cruzeiro com mergulho no Bósforo. Aproveitei para visitar a Capadócia e foi uma semana fascinante, num país que me apeteceu logo revisitar.
Ora como não há fome que não dê em fartura, menos de um ano depois, recebi um convite para ser speaker no TRT World fórum em Istambul que reúne anualmente mais de um milhar de participantes, vindos de todo o mundo, para três dias de Conferência. Lá voltei, com gosto, a essa cidade magnífica e a Conferência foi, por casualidade, no mesmo Hotel em que tinha ficado alojado da primeira vez, o magnífico Hilton Bomonti, numa colina de onde do cimo dos seus trinta e quatro pisos se divisa toda a cidade até ao Bósforo. Com fortes medidas de segurança, já que a dita Conferência foi aberta pelo Erdogan em pessoa, lá fiz a minha participação ao segundo dia.
Sábado à tarde, véspera do meu regresso, como já estivesse mais livre de deveres, decidi dar-me a mim algum tempo livre, apanhei um táxi e fui ao Cagaloglu Hamami, na cidade velha, um dos melhores e mais antigos balneários (1741) de Istambul, para um banho turco. O balneário foi frequentado por muita gente famosa, de estadistas a atores de cinema que figuram gloriosamente, na parede de acesso à receção. Como seria de prever o balneário tem áreas independentes para mulheres e homens, e reservei o meu banho antecipadamente online. O banho turco, para quem não saiba, é diferente da sauna. Não obstante tenha uma primeira fase de cerca de 15 minutos no vapor, entre 40 a 50 graus, é seguida de um banho tradicional, com esfoliação de toda a pele, banho de espuma e água quente e fria alternadas.
É uma experiência extraordinária que provoca uma sensação de relaxamento e bem-estar indescritíveis. O técnico que me acompanhou e me deu o banho, era muito simpático, mas falava muito pouco inglês. As instalações são únicas, em especial a cúpula central e a base gigante de mármore, onde se dá a esfoliação e o banho, já que o vapor prévio, é feito numas salas de pedra em abóbada, com banco igualmente de mármore. Cada pessoa dispõe de um camarim próprio numerado e com chave, para se poder trocar e descansar, onde encontra um kit de higiene e uso individual com toalhão, roupão, chinelos e produtos de higiene.
Depois do banho que dura cerca de uma hora, há um período de relaxamento numa zona de bar, com acompanhamento de piano e onde se pode beber um sumo ou um chá de menta.
Era já dezembro, o dia estava chuvoso e pedi que me chamassem um táxi para regressar ao Hotel. Os táxis em Istambul são "quite an experience"… Esse que apanhei, no regresso ao Hotel, conduzia loucamente, furando o trânsito, por vezes em contra-mão. O taxista era bastante jovem e falava razoavelmente inglês. Perguntei-lhe porque via tantos cães por todo o lado, deitados à porta dos cafés, junto aos monumentos ou frente às lojas. Perguntou-me com surpresa…" não conhece os cães de Istambul"? Confessei-lhe que nunca ouvira falar. O Osman, assim se chamava o jovem motorista, passou a explicar-me que havia cerca de 4 milhões de cães vadios na Turquia, dos quais mais de cem mil em Istambul, todos eles identificados e com chip e protegidos pela cidade e dizia-me isto, enquanto gritava para um condutor que, justamente, protestava por o ver aparecer de frente em contramão e em velocidade excessiva. E se temia pela minha segurança, rapidamente me deixei embalar, mal refeito do banho, por essa história fascinante. O tema dos cães tem dividido a opinião pública dos habitantes de Istambul ao longo dos anos e sido motivo de muita polémica. Chegaram a transferir os cães para uma ilha ao largo de Istambul onde não tratavam dos animais, deixando-os morrer à fome e com sede. Mas anos depois voltaram a protegê-los na cidade. E Osman conta-me que no inverno anterior houve um forte nevão e os Centros Comerciais abriram as portas durante a noite para os acolher. O táxi para junto à praça Taksim, por causa do trânsito denso, e olho pela janela do carro entre as gotas da chuva. Vejo um pachorrento pastor da anatólia, um belo animal que se deita junto a um engraxador de rua como se lhe pertencesse…
Na verdade, já em 1909, o escritor italiano Edmundo d'Amicis (o autor de Cuore, o Coração) dizia que Istambul era um canil a céu aberto…
Pergunto quem os alimenta e Osman responde-me que toda a gente trata deles e dá-lhes comida e acrescenta que o mesmo acontece com os gatos. Acho magnífica essa relação da cidade com os animais. Estou de volta ao Bomonti já é noite. Regresso a Lisboa na madrugada seguinte. Quando cheguei a Lisboa fui procurar na Prime o filme de Elizabeth Lo, Stray, sobre os cães de Istambul…
A não perder… tal como o banho turco…se um dia for pela segunda vez a Istambul.
José Maria Lopes Araújo
28/01/2025