Hélia Jorge

Duendes de Natal

Sinto o cheiro a orvalho e a terra molhada. O chão é um manto colorido de folhas e caruma numa profusão de verdes, alaranjados e castanhos que crepitam debaixo das minhas botas de borracha. À minha volta os pinheiros cerrados espreitam-me na sua altivez e deixam passar apenas uma luz ténue que dá um ar fantasmagórico à paisagem. Vou saltando os troncos que por todo lado se estendem como se acusassem o cansaço e brinco com o meu bafo quente que deixa um rasto de névoa no ar. Ouve-se a passarada em atividade matinal num diálogo alegre com os risos e o cantarolar dos meus irmãos e dos meus primos.

Estamos todos vestidos a rigor para a empreitada, calças de fazenda quente, gorro, luvas e camisolas de lã que as nossas mães tricotaram e o orgulho nas nossas canadianas, todas iguais e até ao joelho, de azul escuro, com capuz e pipas de madeira a fazer de botões, um presente que o Tio João trouxe das suas viagens. Nos pés as botas altas de borracha, que nos protegem do orvalho e nos fazem sentir maiores e importantes. Um balde de praia e uma faca para cada um completa o quadro destes pequenos duendes de improviso cuja missão é apanhar musgo para o presépio.

Vir ao mato nesta altura do ano é sempre uma festa. Sem adultos a dar ordens, a dizer o que podemos e não podemos fazer. Só nós, os primos, numa sensação de comunhão com a natureza, de liberdade e de aventura.

Imaginamos perigos ao virar de cada árvore, escutamos curiosos mas também com um arrepio emocionado os sons que vão surgindo à nossa volta. Sentimo-nos fortes e poderosos, a desbravar caminho como exploradores em expedição.

O musgo veste as árvores num abraço de intimidade verde e húmida que com as nossas mãos pequenas e a nossa faca tentamos a custo separar.

- Com cuidado para não partir! Avisa a minha irmã Mariana, a mais velha de todos e a comandante desta jornada - Precisamos de bocados grandes para forrar a cabana. Tentem no chão ou nos montes que é mais fácil do que nas árvores! E apanhem pinhas para pintarmos de vermelho e dourado e enfeitar a árvore de Natal.

E nós esmeramo-nos e, com artes de artífice, enchemos os baldes e regressamos a casa de peito cheio, a brincar à Branca de Neve e os 7 anões, rindo e cantarolando o "Eu vou eu vou para casa agora eu vou".

Está tudo pronto para a grande obra. Começamos por espalhar jornais velhos no chão da sala. Ao fundo vai ficar a cabana, uma caixa de sapatos velha, que forramos por fora com musgo e por dentro com as palhas das caixas das garrafas de vinho da loja. São José, a Nossa Senhora, o Menino Jesus, a Vaca e o Burro, as primeiras figuras do nosso presépio, já estão em lugar de destaque.

Fazemos pequenos montes com papel amassado, lagos com bocados de espelho partido e forramos tudo com o musgo. Depois desenhamos os caminhos com terra, uns galhos a fazer de árvores e vamos colocando as restantes figuras. Mais próximo da cabana os três reis magos e o homem ajoelhado com a ovelha ao pescoço, a minha figura preferida. No lago colocamos a ponte e as duas ovelhas a beber água. O pastor e o cão no cimo do monte observam as restantes ovelhas que espalhamos um pouco por todo o lado. No final o anjinho por cima da cabana, salpicamos tudo com algodão para fazer de neve e pomos as luzes a piscar.

Os tios e as vizinhas vão passando, batem palmas, elogiam o nosso trabalho e vão largando umas moedas na tacinha que não nos esquecemos de colocar para esse efeito num dos cantos do presépio e que nos permitem a cada ano comprar novas figuras.

E nós rimos felizes e satisfeitos com a obra feita!

Hélia Jorge