Sei que não vou por aí

24-05-2022


Não sei por onde vou,

não sei para onde vou,

sei que não vou por aí!

É com esta frase que termina o poema "Cântico Negro " de José Régio.


Há poemas, livros, filmes que de cada vez que os lês ou vês tens uma nova interpretação, uma nova visão.

Foi assim com o "Cântico Negro" de José Régio que comecei a ouvir desde cedo.

Teria eu talvez uns 12 anos e já ouvia a minha irmã Isabelina, cinco anos mais velha, a declamar magistralmente este poema.

Ela lia, lê, com entoação, com paixão e esta última frase, que ela dizia em tom grave e quase num grito, mexia com as minhas emoções.


O Cântico Negro foi uma definição da personalidade, foi um ato contestatário e de rebeldia, foi um processo de auto-conhecimento, foi um manifesto de liberdade... foi várias coisas em vários momentos.

Há pouco tempo ao reler o poema ocorreu-me a sua relação com processos de mudança, com transições.


Quantas vezes, quando entramos em transição (reforma, divorcio, etc) ouvimos pessoas que nos dizem "vem por aqui", pessoas que, na melhor das intenções, nos dão conselhos que acham "que seria bom que eu os ouvisse" ...?

Cada caminho é um caminho, esta é uma verdade de La Palice, mas não é essa a mensagem que agora me traz este poema.

Muitas vezes numa transição é normal perdermos os referenciais. É normal não saber mais quem somos e do que somos capazes, não saber o caminho, "por onde ir", nem o destino "para onde ir".

E com essa incerteza vem a frustração e o medo.


Ocorre-me que saber o que não queremos, "sei que não vou por aí", é tão ou mais importante como saber o caminho ou o destino.

Sou mentora e tenho muitas vezes sugerido esta técnica em processos de mudança de carreira quando a pessoa que estou a aconselhar não faz a mínima ideia por onde ir ou para onde ir. Apenas sabe que se sente insatisfeita com a situação atual e que precisa de mudar.

Pensar o que não queremos também não é fácil mas é concerteza mais fácil do que saber o que queremos e ajuda a definir o caminho.

Por isso, se está em transição e não sabe para onde ir ou para onde ir pense a que aspetos da sua vida vai dizer "sei que não vou por aí".

E confie, o caminho chegará!

Aqui fica o poema na íntegra para lhe servir de inspiração!

Hélia Jorge


"Cântico Negro"

"Vem por aqui"
- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-Sei que não vou por aí!

José Régio


Fotografia de Hélia Jorge