O último Natal

26-12-2022


Na passagem da vida há sempre aquele que mesmo sem se saber... é o último Natal.

Ao meu amigo José Rodrigues que aprendeu com a velha empregada como fazer o Pudim abade de Priscos...


Tenho o telefone ainda na mão e não sei o que diga.

Que vida esta...e que Natal!

Não tem dois dias que fomos chegando aos poucos à casa de família junto ao Arco da Porta Nova. Ironia desta terra, onde tudo é velho, menos o nome do arco da porta que mesmo assim, dá entrada à parte antiga desta cidade de Braga, também chamada a Roma Portuguesa-a Bracara Augusta. Roma Portuguesa não sei se pela ligação ao império Romano, se pelas dezenas de igrejas que tal como na cidade Santa, enchem a urbe outrora calcorreada por padres, freiras, Bispos e Arcebispos, cheia do incenso no ar das Procissões ao longo de todo o ano, em especial na Semana Santa com os Calvários espalhados pela cidade, o Lausperene com calendário disputado e os Farricocos encapuzados fazendo soar tetricamente as matráculas. Agora, aparentemente menos religiosa, a cidade enchera-se dessa nova epidemia que dá dinheiro e grassa por todo o lado- o Turismo. Turismo no Verão, onde achar um lugar para comer era difícil, turismo pela Semana Santa, pelo Natal e fim de ano, enfim turismo todo o ano. As estreitas ruas da parte velha, transformaram-se em bares e pequenos restaurantes, as Casas Senhoriais em turismo de habitação com nomes patéticos e inglesados.

Sobrevivera a nossa casa de família.

Casa Senhorial de dois andares, duas fieiras de varandins em baixo, varandas em cima, firme nos seus mais de três séculos de vida, com o portão principal ornado com o Brasão de família. No interior, dezenas de quartos e corredores escuros, uma casa como dizia Régio "cheia de maus e bons cheiros das casas que têm história"... " cheia de sol nas vidraças e de escuro nos recantos". Era assim a casa do meu saudoso Pai, José Maria de Rodrigues Aguiar, Visconde dos Arcos, natural de Arcos de Valdevez, formado em Direito por Coimbra, desembargador da Relação do Porto. Falecera novo.

Com a morte dele e especialmente depois da morte de minha mãe pouco tempo depois, eu e meu irmão passámos a ir menos vezes à velha casa de família do Arco da Porta Nova.

A casa, porém, não ficara vazia. Ficara a Angela, velha criada que era já parte da nossa família. Fora recomendada pelos Melos amigos de meu Pai de infância em Arcos. Ainda muito nova, viera de Terras de Bouro Gerês, trabalhar para nossa casa e já cá estava há mais de setenta anos. Nunca casou. Ninguém sabe porquê. Era uma mulher bonita quando nova, a avaliar pela fotografia que tinha no quarto junto ao irmão Amadeu, muito mais novo do que ela e que cedo partiu para França e por lá ficou. A fotografia estava em cima da cómoda numa moldura, entre uma floresta de Santos e de crucifixos da sua devoção e junto á lamparina sempre acesa, frente à imagem do Bom Jesus.

Do Amadeu apenas sei o que meu Pai contara. A Angela falava pouco dele, mas tinha-o sempre ali sobre a cómoda, o tempo todo. Ele, Amadeu, vinte anos mais novo do que ela, partira para França nos anos sessenta, tempos de miséria aqueles em Portugal, em especial no interior Norte agrícola. Contrariamente aos outros compatriotas que se fixaram na banlieu de Paris nos famosos bidonville, Amadeu fora para Sul para a região de Lyon. Trabalhou duro, primeiro no porto da Confluence onde os rios Rhone e Saone se encontram, trabalho pesado com neve no inverno e nevoeiro cerrado meses a fio, até ao verão. Depressa mudou para a construção civil. Trabalhava bem na construção onde se revelara um profissional competente. Desafiado por um pequeno construtor francês, juntara-se a ele para fornecer serviços ao seu anterior patrão. Rápido ganhou clientes e obras significativas para a cidade e para projetos de grande dimensão. Tinha orgulho em dizer que contribuíra na parte de cimento e colocação de andaimes, na construção do chamado Crayon que se via de toda a Lyon, uma aberração de 50 andares espetada no céu da cidade e que agora eram escritórios e um Hotel.

Meu pai foi o único da família que conheceu o Amadeu. Foi no final dos anos setenta. Fora a Paris a um Congresso de Magistrados Europeus e tal como prometera a Angela, metera-se no TGV e fora visitá-lo a Lyon.Ele esperou-o na estação de Part-de-Dieu com um Mercedes último modelo e levou-o a ver obras suas e a almoçar em casa com a família numa bela vivenda em Ecully. Fora gentil e grato para com o carinho que davam a Angela. Disse que durante anos tentou que ela fosse viver com eles para Lyon mas ela recusou sempre, dizendo que a sua casa era a da Porta Nova e que ali queria morrer, nunca longe do seu País, entre estranhos e numa língua que não entendia. Passados tantos anos, Amadeu era já mais Francês do que português. Não vinha a Portugal, nem quisera fazer casa em Terras do Bouro como tantos conterrâneos faziam. A dor dos tempos de infância não passara e só pensar em Portugal, significava para ele lembrar-se de uma infância difícil e pobre e de uma família que não teve. Meu Pai ouvira-o pacientemente e trouxera consigo a enorme caixa de chocolates para a Angela, caixa que Amadeu lhe entregou ao deixá-lo ao fim do dia na estação, no regresso a Paris. Nessas últimas décadas, mesmo depois da morte de meu Pai, falámos à Angela do irmão e perguntávamos porque não o ia ver.

- Havemo-nos de ver e ficar juntos no outro mundo- respondia enxugando uma lágrima no canto do olho. Depois deixara de chorar ou mesmo de falar dele.

E assim foram passando os anos e os Natais. O Amadeu escrevia-lhe e mandava-lhe dinheiro, mas deixara de insistir nos convites para ir a França.

A Angela não era já nossa empregada. Era também na verdade dona daquela casa, todo o resto do ano. Cuidava da casa como se ela estivesse sempre cheia, no entanto, estava a maior parte do tempo vazia, sempre à espera de que os meninos viessem do Porto com os filhos e agora com os netos, enchendo de novo os velhos corredores e os quartos fechados todo o ano, com as correrias e brincadeiras das crianças. O Natal era a ocasião ideal para isso.

Agora a Angela já estava com quase noventa anos, bonita idade. Sempre muito lúcida e ativa. Começava a limpar a casa e a preparar a cozinha uma semana antes do Natal.

Fora assim também este ano. Com a ajuda da Maria Adelaide, rapariga que a ajudava nos últimos anos. Era da sua confiança e viera da sua aldeia, a Carvalheira, já perto do Rio Homem no Gerês. Aprendera a tratar da casa e a cozinhar com a Angela, a quem queria mais do que à mãe.

Angela ensinara-lhe tudo na cozinha. A fazer bem o mais conhecido e a trabalhar até o desconhecido, como seja, como escolher e cozinhar os míscaros e a fritar as cherovias. Como assar e rechear o capão, como fazer o peru tenro e saboroso não o deixando secar, o cabrito e o bacalhau à Arcos como o Sr. doutor gostava e a roupa velha para o almoço de dia de Natal, já tradição na família. E os doces ...o Pudim Abade de Priscos que todos adoravam e que até ensinara a receita ao Sr. Doutor e aos meninos, o pão de ló molhado, os doces de ovos e o bolo de Natal que enchiam a casa de aromas únicos.

Tudo ficara pronto a tempo, mas desta vez a Angela não quisera comer nada. Estava cansada e dissera ao fim da tarde...este Natal é o último!

Caiu-lhe em cima um coro de reclamações...

- Há quantos anos diz isso Angela? E está cá connosco e está bem...

Já há anos que ela não ia à missa do Galo. Preferia fazer as suas orações à noite no quarto e de manhã ia à igreja. A casa ficava entregue à família e aos mais novos que partiam logo depois da Ceia para a missa do Galo.

O Natal traz-me sempre essa terrível nostalgia de me lembrar dos que partiram e que antes estavam ali na Igreja comigo. A Sé estava cheia, mas ainda assim fria e confesso que não tive paciência para ouvir o Padre falar da Boa nova e do nascimento do menino...o meu pensamento voava pelos anos que passaram rápido, pelos que desapareceram e pelos que entretanto chegaram à família agora mais numerosa, pelas crianças que iam nascendo e enchendo de alegria os mais velhos.

Em casa antes de me deitar, recordara uma vez mais, tudo e todos e lembrei-me da Angela cada vez mais velha e de como nos viu crescer a todos.

De manhã foi a Maria Adelaide quem bateu à porta do nosso quarto.

- Senhor Doutor, Senhor Doutor... a Angela....

A Angela partira durante o sono, na noite de Natal.

Ó meu Deus... era preciso conseguir que um médico amigo viesse atestar o óbito, isolar aquela parte da casa das crianças. Logo no dia de Natal...

E temos de avisar o irmão. Procurou-se nas gavetas do quarto dela à procura de uma morada e de um telefone. Finalmente encontrámos.

Acabei de ligar para França. O telefone tocou várias vezes, depois atendeu uma voz que falava mal o Português.

- É da casa do Senhor Amadeu? Posso falar com ele?

- Non...

Monsieur Amadeu morreu de repente a noite passada.

Lopes de Araújo

(Nomes e locais são em parte ficcionados, mas como sempre, o conto é inspirado em factos reais.)



Fotografia de Lopes de Araújo