O leitor, um co-autor
Em 2014, um de meus romances foi traduzido para o castelhano e publicado no México. O título original, em português, é "Pretérito quase Perfeito". Gosto do título, que, com uma referência ao tempo verbal - pretérito mais que perfeito - lança uma subtil luz sobre um aspecto do conteúdo da trama que me parece (ao menos me parecia, quando escrevi o livro) ser a peça central da história. Mas a editora mexicana, provavelmente por motivos comerciais ("Pretérito casi Perfecto" foi considerado um tanto hermético e sem maior apelo à curiosidade dos eventuais futuros leitores), me sugeriu que buscasse um novo título, mais chamativo. Após a releitura, em conjunto com o revisor mexicano, de vários trechos do livro, surgiu o nome com o qual o livro foi publicado: "Los Fantasmas también mueren". Devo confessar que, apesar de minha relutância inicial, acabei por gostar do novo título. De forma menos subtil, ele também se refere a um elemento crucial da novela; chegou mesmo a provocar um comentário interessante de um leitor: todos temos nossos fantasmas, uns que já morreram, outros que estão prestes a morrer e também os que não morrem nunca. Uma bela observação, que me ficou gravada na memória. No entanto, ela se refere a um determinado elemento do romance, encarnado por seu protagonista. Já o título original, em português, refere-se a outro personagem.
Esta mudança de títulos me levou a refletir sobre um aspecto da atividade literária -sobretudo no campo da ficção - que passei a encarar como algo de grande relevância. Refiro-me ao papel do leitor e a seu poder de modificar uma obra, situando-a em contextos diversos e a ela atribuindo significados alternativos. Minhas reflexões foram estimuladas por ocasião das sessões de lançamento e apresentação da obra em universidades e feiras do livro, sempre seguidas de debates, perguntas e observações dos organizadores e do público. Nessas ocasiões, ouvi diversos comentários sobre meu livro, emitidos por alguém da editora ou da entidade anfitriã, como prelúdio às sessões de diálogo com a plateia. Trechos e personagens do romance foram destacados, dando lugar a interpretações as mais diversas. A partir daí, comecei a perceber que cada leitor é, na verdade, um co-autor.
Para desenvolver uma trama e criar seus personagens, o autor busca dentro de si - em suas memórias, experiências e convicções - o material que sai de sua cabeça e se transforma em palavras, frases e parágrafos que contêm enredos e personagens. Mesmo que não se trate de uma obra autobiográfica, forçosamente estarão ali pedaços desconjuntados da psique do autor.
Ora também o leitor, quando lê uma obra literária de ficção, analisa o que lê, julga as ações dos personagens e imagina os cenários onde se transcorre a ação do romance baseado em suas próprias vivências, seus anseios e lembranças. E acaba tirando suas conclusões pessoais e tecendo interpretações que dizem respeito diretamente a seu modo de pensar. Muitas vezes, conforme pude constatar em várias ocasiões, encontra na obra coisas que nunca passaram pela cabeça do autor.
É que a literatura tem esse dom de nos fazer exercitar algo precioso que temos dentro de nós: a imaginação.
Um bom exemplo disso ocorre quando se discute a relação entre cinema e literatura. Quando alguém lê uma obra de ficção e depois vai ver o filme que fizeram baseado naquele texto literário, geralmente sai do cinema um tanto decepcionado. É que quando ele leu o romance, foi projetando em sua mente um filme, ou seja, foi construindo em sua cabeça as imagens, os personagens e as ações que estão no livro apenas em palavras, em símbolos gráficos. O leitor projeta em sua mente um filme em que ele mesmo é o diretor, o cinegrafista, o iluminador, etc. A própria fisionomia dos personagens é uma projeção de suas memórias. Então, quando ele vai ao cinema, vê um filme saído da cabeça de outro diretor. Geralmente aquilo que ele vê na tela do cinema não coincide com aquele filme que estava dentro da sua cabeça.
É por isso que eu acho que um romance é algo diferente em cada leitor, em cada leitura. Uma obra literária, sobretudo de ficção, pode se transformar constantemente, segundo a ótica de diferentes leitores.
JSCC - dez/2015
João Solano (1)
(1) O autor escreve em português do Brasil