“Monsieur” - Evocando Jean d’Ormesson

15-06-2021

Se há pessoa que eu teria gostado de conhecer na vida seria Jean d'Ormesson. Quis o destino que não só não o tivesse conhecido em vida como só tivesse conhecido parte da sua obra depois do seu desaparecimento, ou seja, há muito pouco tempo. Li, em 2007, uma entrevista que deu ao Público quando cá veio, feita pelo Adelino Gomes em Lisboa, creio que para apresentar um dos seus livros, mas confesso que não me despertou grande curiosidade. Tivesse eu conhecido a sua obra antes e arranjaria maneira de o conhecer pessoalmente ou de eventualmente ir a França com o pretexto de o entrevistar. Comecei a ler a sua obra já depois da sua morte, na sequência de um documentário que vi, por acaso feito pelo Frederic Mitterand, e que passou no Canal Arte. Faleceu na sua casa em Neuilly-sur-Seine, em Dezembro de 2017, com 92 anos e em plena lucidez. Escreveu até à véspera de morrer.

Foi escritor, filósofo, Presidente da Academia de França, diretor do Figaro durante alguns anos, um comunicador fabuloso, um ser Humano imenso, simples e de trato elegante, um sedutor. Era conde (de seu nome completo Jean Bruno Wladimir François-de-Paule Lefévre d'Ormesson), filho de uma família das mais nobres de França mas, como ele próprio dizia, estas origens nunca eram referidas em casa a não ser para dizer que a única nobreza que interessava era a do carácter e a dos valores. O Pai e ele eram, aliás, republicanos e conservadores e profundamente antinazis (durante a guerra).

Jean d'Ormesson, cujo pai foi Embaixador de França no Brasil, falava um pouco de Português e divertia-se imenso com a música brasileira que por vezes cantarolava. Foi talvez o último grande intelectual francês de toda uma geração a desaparecer. No seu funeral estiveram três Presidentes da República e personalidades da esquerda à extrema-direita. Talvez ninguém como ele tenha tão bem encarnado o sentir, o pensamento e a herança cultural francesa. E apesar de se ter sempre afirmado como politicamente de centro-direita, reunia simpatia e apoio de todas as áreas políticas.

Falo assim com paixão, porque basta ir ao YouTube e ver os inúmeros vídeos com as participações d'Ormesson em programas de todo o tipo da televisão francesa, desde programas culturais a talk-shows, e ninguém lhe fica indiferente. Até os jovens em estúdio o aplaudiam de pé quando entrava, sempre sorridente, com olhos azuis muito vivos, o cabelo branco um pouco desalinhado, de blazer e um toque de elegância que não se sabia de onde vinha.

Infelizmente há poucos livros traduzidos em português da sua enorme obra, quase toda editada pela Gallimard (era amigo pessoal de Antoine Gallimard, o atual proprietário).

Que eu saiba, em português, estão editados apenas "A Criação do Mundo" pela Quetzal, "O Porteiro de Pilatos ou o Segredo do Judeu Errante" pela Publicações E/A e, mais recentemente, "O Mundo é uma Coisa Estranha, afinal" da editora Guerra e Paz. Para a geração ainda francófona, claro, toda a obra está disponível em Francês, na Fnac.

"Au plaisir de Dieu" (que era também a divisa do brasão de família) foi talvez o livro que o tornou mais conhecido, publicado em 1974 e adaptado para série de televisão em 1976; é um pouco autobiográfico e conta a infância e juventude passadas no castelo de Plessis-Vaudreuil, casa da sua família, sendo também um olhar sobre os grandes acontecimentos e ideias do século que agitaram a sociedade francesa e europeia.

Deve-se a Jean d'Ormesson a entrada da primeira mulher na Academia Francesa: foi pela sua mão que Marguerite Yourcenar entrou, e mais tarde Simone Veil, pondo fim a séculos de presença exclusivamente masculina.

Durante toda a sua vida refletiu sobre o tema da vida e da morte de uma forma clara, simples e desdramatizada.

"Só morre quem teve a felicidade de ter vivido. E quando se nasce (o que é um facto incerto) assinamos um contrato com a morte (facto absolutamente certo)." Encarava a morte de uma forma natural ("atenção não a desejo"...dizia..."mas tenho uma certa curiosidade").

Qualificava-se como um cristão e católico não praticante e ultimamente como agnóstico. Dizia: "substituí a Fé pela Esperança"... "Tenho esperança que Deus exista...senão nada disto faz sentido". Era também muito tolerante para com os ateus. Dizia: "Estou convencido que à direita de Deus está um ateu..." porque "o ateu o que faz de bem faz sem busca de qualquer compensação divina"...

Um dia perguntaram-lhe o que levava de melhor desta vida. Respondeu de imediato: "o mar, as mulheres e os livros...não necessariamente por esta ordem".

Recentemente foi editado, em França, um DVD com um longo documentário sobre a sua vida e obra, intitulado "Monsieur".

O seu último livro, deixou-o interrompido e assim foi publicado pela sua filha Heloíse d'Ormesson a título póstumo, chama-se "Como um Hossana sem fim...". A primeira página é um fac-simile das últimas linhas que escreveu.

Tenho-o aqui à minha frente. Escrevia a lápis.

No dia do funeral nos Invalides, depois do discurso, o Presidente Macron desceu do púlpito e foi colocar, sobre o caixão coberto com a bandeira de França, um lápis.

Lisboa, Junho de 2021

Lopes de Araújo