Ler um Livro é Magia!

03-12-2021

O autor cria a sua obra. Logo que transita para o leitor ganha múltiplas facetas, de acordo com a interpretação do destinatário. Apela à visualização e ao sonho, é mágico pelas inúmeras histórias e "pessoas" / personagens que se conhecem, pelo poder de sedução que exerce.

Quando se pega num livro lido transmite-se uma corrente magnética de telepatia e ele verte-se de novo em nós. O facto de acariciarmos a folha de papel chega para este contacto de 3º grau, um fio condutor, não de electricidade, mas de palavras. A literatura é o caminho para a magia.

«Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. ...

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez, numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.

Minha pátria é a língua portuguesa. ...,Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.» (1)

É impossível não concordar! Também chorei nas páginas finais do romance "A Ilustre Casa de Ramirez" do meu adorado Eça de Queiroz. Falido, o último descendente dos Ramirez vende-se à política e ruma à capital. A descrição que faz do ambiente de injustiça, nepotismo e corrupção é tão paralela à actual que fiquei incomodada e chorei.

Este poema, numa primeira abordagem faz rir, depois tem um grande poder de influência para quem "começar a ser".

Não vou mais lavar os pratos

Nem vou limpar a poeira dos móveis

Sinto muito

Comecei a ler

Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi

Não levo mais o lixo para a lixeira

Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal

Sinto muito

Depois de ler percebi a estética dos pratos

a estética dos traços, a ética

A estática

Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros

mãos bem mais macias que antes

e sinto que posso começar a ser a todo instante ... (2)

Dois exemplos tão diferentes, quase antagónicos, são ilustrativos do encanto do universo literário. Porque os escritores são imortais!

Maria de Lurdes Aleixo Dias


(1) Bernardo Soares, heterónimo do multifacetado e magnífico Fernando Pessoa, no fragmento 259, Livro do Desassossego

(2) Não Vou Mais Lavar os Pratos de Cristiane Sobral, Editora Thesaurus, 2010