Encontros Previstos

08-11-2021

Victor tinha uma parelha de éguas, a Ondina e a Osga (que se tivesse nascido nos anos noventa do século passado, chamar-se-ia certamente Ricardina), que eram animais de sela. Também havia a Russa que frequentemente era atrelada a uma charrete, e o Victor fazia a deslocação entre a vila e a propriedade, ou vice-versa. Era um exímio cavaleiro, mas preferia ir de charrete para ter a companhia dos filhos, ainda pequenos.

(Estas telas de vida aconteceram há muitos anos. Por volta dos anos quarenta e cinquenta do século XX. Algumas senhoras falavam francês e tocavam piano, os senhores andavam de chapéu ou de boina, as crianças nasciam em casa e a maior parte não tinha sapatos quando começava a andar. Também é a razão de não escrever Vítor, mas Victor.)

As duas éguas de sela eram castanhas, uma mais escura e mais alta, que era a predileta, a Ondina. A Russa, que não era de nacionalidade, além de nome era também de pelagem (que o branco da natureza não é da lixívia, como tão bem sabem) e estava cega de um olho. Acompanhado dos filhos ou não, com o Victor ia sempre um pastor alemão, e por vezes, à solta, a poldra baia filha da Ondina, com uma estrela branca na cabeça, a Flecha. Um poldro nunca se afasta da mãe, por isso a Flecha cabriolava e fazia corridinhas com o cão.

Rajá - "take one"

Rajá chamava-se o pastor alemão. Não tinha turbante nem diadema, mas uma fofa e densa juba, e além da cor preta habitual no dorso, o peito, a barriga, as patas e parte da cauda eram cor de trigo maduro. Uma pelagem tradicional para um temperamento de ouro.

Para onde o Victor fosse, estivesse onde estivesse, no escritório ou no cadeirão de palha a apanhar sol ou a conviver no terreiro, o Rajá estava. Acompanhava-o sempre nos afazeres da lavoura e da vida, e só se despediam em silêncio quando iam dormir. O Rajá montava guarda e gostava de dormir ao relento; raramente ocupava a casota de alvenaria, tapetada para seu conforto com um cobertor dobrado em oito; apenas quando havia borrasca, da grande.

Assim foram correndo os anos neste entendimento quase perfeito. O Rajá só perdia o norte quando o Victor, por brincadeira, tentava tirar-lhe a malga com a comida. Rosnava e colocava o corpo de forma a fazer uma barreira. Mais ninguém ousava. O Rajá dissuadia qualquer um só com o arreganhar dos dentes e aquele som rouco vindo das suas profundezas. E usava sempre o corpo, nunca atacava.

Rajá - "take two"

Victor faleceu prematuramente, em 1963, no mesmo ano de John F. Kennedy e de muitos outros anónimos como o Victor, que só ficam na história dos seus.

O Rajá, que tinha em anos de Homem o dobro da idade, percebeu, digo eu agora que já teria pressentido. Montou arraiais à porta do escritório e pouco de lá saía. Não havia festas, nem crianças a puxarem ou a deitarem-se em cima dele que o demovessem da sua melancolia. Pouco ou nada comia e um dia partiu. Acho que o Rajá não quis habituar-se à ausência. Tomou somente algum tempo para o encontro.

Um encontro previsto.


"...

Meu rapazinho, quero ouvir-te rir outra vez...

Mas ele disse-me:

-Faz um ano esta noite. A minha estrela deve encontrar-se precisamente por cima do lugar onde caí o ano passado...

-Meu rapazinho, não achas que é um sonho mau essa história de serpentes e de encontro e de estrela?...

Mas ele não respondeu à minha pergunta. Disse-me:

-O que é importante não se vê...

-É certo...

-É como com a flor. Quando se ama uma flor que se encontra numa estrela, é um encanto, à noite, olhar para o céu. Todas as estrelas estão floridas.

..."

Antoine de Saint-Exupéry, em O Principezinho, XXVI


Alexandra Carvalho