Desiderata

21-05-2022

O meu maior problema, que aspirava resolver, é o carro e tudo a ele ligado. O carro? - perguntam vocês. Provavelmente tem um calhambeque e deseja um topo de gama. Falso!

Contudo, para compreenderem integralmente este desiderato, tenho de fazer uma retrospetiva da minha relação vulcânica com estes andantes de quatro rodas.

Eu sou de Vildemoinhos, Viseu. Casei em Lisboa e por cá fiquei. Ingressei no ensino em 1973. Durante os primeiros anos trabalhei na Cova da Piedade e em Almada. Apanhei lá o 25 de Abril e o reitor foi imediatamente demitido em reunião plenária, embora até tivesse feito um bom trabalho. Havia reuniões de escola dia sim dia sim, onde havia insultos e ameaças de chegar a vias de facto. Com a confusão que se instalou, houve um "engano" no concurso e eu fui parar a Vila Viçosa e em Almada ficaram professores com menos habilitações. Recorri, solicitando a reposição da justiça e, em caso de injustiça extrema, preferia voltar às origens.

Como na altura já eram defensores da regionalização, fui recambiada para Mangualde. A maior parte dos colegas eram de Viseu e logo arranjei boleia. Fiquei em casa da minha mãe e decidi tirar a carta para não estar dependente no futuro.

Tive a pouca sorte de o exame ser numa terça-feira, dia de feira. Lá fui conduzindo o melhor possível debaixo de nervos. Quando vinha a descer para o Rossio apanhei uma carroça carregada de hortaliças e puxada por um burro. O animal, teimoso como um burro, começou a zurrar e a travar as patas, claro. Deixei ir o carro abaixo e sussurrei "Credo abrenúncio, já chumbei!" Porém, o examinador foi bonzinho e ignorou o episódio animalesco. Estão a ver? Carro de condução!

No ano seguinte fui colocada em estágio na Portela de Sacavém. Ia para lá num MG Midget branco descapotável e conduzia muito devagar para me adaptar ao trânsito frenético de Lisboa. "Não tens unhas para um descapotável! Vai coser meias!" Eram alguns dos piropos machistas invejosos. Preconceito: mulher conduz mal!

Entre os vários carros que tive a seguir, comprei um Suzuki em segunda mão. Fomos ao endereço do anúncio e achámos deveras estranho o ambiente pois ingressámos numa sala de espera. Quando chegámos à fala com o dono, fechámos negócio e o senhor forneceu um cartão de visita. O carro era muito giro, bordeaux nacarado, mas estava sempre a avariar. Sabem porquê? O antigo dono era vidente/bruxo e lançou-me um spell aziago. Provado!

Jurei que nunca mais teria um Suzuki e passei para a Toyota. Já vou no terceiro. E agora perguntam intrigados: Mas afinal qual é o desejo? Já vão descobrir dois ou três.

A minha garagem é tipo catacumba; descida a pique, curva em ângulo reto e slalom entre colunas. Após trinta, trinta anos a meter lá o carro, ganhei um pavor. Até no lugar de pendura fecho os olhos, o que é pior, porque fico com tonturas. Passei a deixar o carro na rua, multas e o carro rebocado duas ou três vezes, escolhida a dedo no meio de dezenas mal estacionados. Até cheguei ao cúmulo de tirar fotografias para provar a minha integridade.

Optámos por alugar uma garagem no prédio ao lado. Fui investigar porque a dona tem o carro todo amolgado. Em relação às catacumbas era um paraíso. Paraíso com maçã porque o senhor da frente me abalroou dentro da garagem. Cruzes credo! Agora já concordam, não é?

Então quais são os meus desejos? Viajar por todo o lado como antigamente, atravessar Lisboa junto ao rio, ir à Parede, a Cascais, a Sintra, à outra banda, .... Não consigo! Perdi a capacidade de orientação e de aventura. Ter um carro, mesmo fraldiqueiro, que me ajude a vencer o medo. Já experimentei o GPS mas embirro com a menina que me manda virar após 200 metros. Eu sei lá quando são 200m!

Alguns versos do poema deixam-me mais confortada. Já perdi tanta coisa com medo de ir, já perdi tantos amigos com o medo de ir, já perdi tantos dias da vida com o medo de ousar.

"Siga placidamente
por entre o ruído e a pressa
e lembre-se da paz
que pode haver no silêncio." (...)

"Você é filho do universo, assim como as árvores e as estrelas:

você tem o direito de estar aqui." (...)

Na fatigante confusão da vida, mantenha-se em paz com sua própria alma,

apesar de todas as falsidades, fadigas e desencantos. O mundo ainda é bonito.

Seja prudente e faça tudo para ser feliz! 

Maria de Lurdes Aleixo Dias

Fontes: Max Ehrmann, em "Desiderata: um caminho para a vida". [tradução Iva Sofia Gonçalves Lima]. Edições de Bolso. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2006. (Max Ehrmann, Desiderata, Copyright 1952)
Versão original Desiderata by Max Ehrmann © 1927 (é mais bonito)