Damião e a Torre do Haver

09-03-2023

Não é invulgar as pessoas viverem numa rua ou num lugar, sem conhecerem o personagem, o evento ou a circunstância que justifica esse topónimo e, muito menos, a sua obra.

Já escrevi aqui antes sobre Dom Jerónimo Osório e o seu exemplo, mas hoje foco-me em Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo ou do Haver, que empresta o nome à rua situada nas traseiras do meu prédio. Dê-se o seu nome como endereço a um taxista e ele imediatamente se situa, mas sobre quem era e o que fez, poucos conseguem elaborar.

Na arquitetura militar a Torre do Haver era a torre do castelo medieval onde se guardavam os valores do tesouro real e posteriormente, registos, tratados e outros documentos importantes (1). Este local situou-se durante muitos anos na torre albarrã do Castelo de São Jorge, em Lisboa. Ocupava dois pisos e guardava, entre outros, os roteiros da África e da Ásia, que conferiam aos portugueses decisiva vantagem nas explorações e engrandecimento do império (2).

Depois do terramoto de 1755, a documentação remanescente foi transferida para o Convento de S. Bento da Saúde (actual Assembleia da República), onde permaneceu até à abertura do presente espaço em 1992 (3).

Como se percebe, o guardião de um tal espólio teria de ser uma pessoa culta, honesta e de plena confiança do seu soberano, pois lá se guardava o património arquivístico do nosso país desde o século IX, antes mesmo de existirmos como nação independente.

Damião Góis nasceu em Alenquer e tinha ascendência luso-flamenga, tendo servido no Paço desde os nove anos de idade como pajem de lança de D. João II, com quem estabeleceu amizade. Posteriormente, recebeu morada e foi moço de câmara de D. Manuel I durante dez anos, período durante o qual estudou e conviveu com matemáticos, músicos, poetas, filósofos e navegadores, conhecendo de perto os principais personagens do seu tempo.

Após a morte de D. Manuel, com apenas vinte anos de idade, o novo monarca D. João III nomeou-o para secretário da Feitoria Portuguesa de Antuérpia, tendo servido igualmente em missões diplomáticas e comerciais por toda a Europa.

Foi amigo próximo de Erasmo de Roterdão, encontrou-se com o matemático e conhecido luterano Sebastian Munster e o teólogo e filósofo Simon Grynaeus. Em Paris onde se encontrava em 1533 conviveu com o frade franciscano Roque de Almeida, foi convidado por D. João III para ocupar o lugar de tesoureiro da Casa da Índia, o que recusou, abandonando o serviço oficial e seguindo em peregrinação a Santiago de Compostela.

Nos anos seguintes estudou em Estrasburgo, Basileia e Friburgo aprofundando os seus ideais humanistas, enquanto mantinha um conflito com o jesuíta português Simão Rodrigues, que suspeitava que Góis estaria mais próximo das visões heréticas dos humanistas, do que da sã doutrina católica.

Estudou na Universidade de Pádua entre 1534 e 1538, tendo conhecido vários humanistas italianos, visitando Veneza, Roma e percorrido toda a Itália. Privou igualmente com Inácio de Loyola, que foi propositadamente de Veneza a Pádua para se desculpar do comportamento desrespeitoso de Simão Rodrigues para com Damião, tendo ficado hospedado em sua casa.

Terminados os estudos fixou-se em Lovaina, um dos principais centros de conhecimento da Europa, tendo obtido consentimento de D. João III para casar com Johanna van Hargen, com quem viveu até esta falecer em 1569. Versátil e culto, tornou-se escritor, músico, compositor, colecionador de arte e mecenas. Entre as obras por si coleccionadas é frequentemente atribuído o tríptico de As Tentações de Santo Antão, do pintor holandês Hieronymus Bosch (3; 4).

Na sequência da sua participação na defesa de Lovaina durante a invasão francesa da Flandres em 1542 Damião de Góis foi feito prisioneiro, sendo libertado dois anos mais tarde por intervenção de D. João III. Carlos V reconheceu esses serviços elevando-o a fidalgo de cota de armas da Flandres, honra que lhe foi confirmada por el-rei D. Sebastião de Portugal.

As suas obras humanistas e historiográficas tiveram ampla aceitação entre a intelectualidade europeia do seu tempo, sendo editadas em várias cidades, conferindo-lhes ampla difusão. Contudo, essa sua visão humanista e, em particular, os seus contactos com reformadores e intelectuais considerados heréticos, levantaram profunda suspeição junto do clero português, que não aceitou os seus escritos.

Em 1545 a convite do rei D. João III, mudou-se para Portugal com a família, ao tempo a mulher e três filhos, para ser mestre do príncipe D. João. Contudo, apesar de ter regressado aureolado de prestígio pelas amizades que contraíra na Europa e da evidente protecção régia, foram-lhe movidos dois processos no Tribunal do Santo Ofício. O primeiro logo nesse ano, acusado de heterodoxia pelo seu antigo companheiro de estudos, o padre Simão Rodrigues (ao tempo o preceptor do príncipe herdeiro D. João), sendo nomeado pouco depois por Inácio de Loyola como primeiro provincial da Ordem de Jesus.

Beneficiando da protecção de D. João III, os processos da Inquisição foram arquivados, sendo nomeado a 3 de Junho de 1548 guarda-mor interino da Torre do Tombo, a substituir Fernão de Pina (também ele sob alçada da Inquisição), acabando por permanecer no cargo até 1571, tendo sido o seu 11.° guarda-mor.

Publicou vastíssima obra. Em 1558 foi escolhido pelo cardeal-infante D. Henrique, talvez por ter vivido na corte naquele período, para escrever a crónica oficial do reinado de D. Manuel I de Portugal. Tendo à sua disposição as fontes documentais do arquivo régio, Damião de Góis deu início à sua obra de cronista, completando o trabalho em 1565.

O seu legado historiográfico, acrescentado ao que escrevera e defendera anteriormente, trouxe-lhe novos problemas com a Inquisição e com algumas famílias nobres, voltando a cair em 1571 nas garras do Santo Ofício. Desta feita sem a protecção real e abandonado pelo cardeal-regente, foi preso, sujeito a processo e em outubro de 1572 condenado a cárcere perpétuo, como hereje, luterano, pertinaz e negativo.

Foi transferido para o Mosteiro da Batalha em 1571, onde esteve preso até Dezembro de 1572, em condições particularmente duras, sendo-lhe confiscados todos os seus bens. Em 1573 já velho e muito doente, coberto de sarna, foi libertado e autorizado a recolher-se à sua casa de Alenquer. Aí, abandonado pela sua família, apareceu morto, com suspeitas de assassinato, em 30 de Janeiro de 1574, sendo enterrado na igreja de Santa Maria da Várzea, que mandara restaurar em 1560 e onde adquirira o direito de ser enterrado na capela-mor.

Em 1940, devido a ruína, a capela que inclui o túmulo de Damião de Goes e de sua mulher, Joana van Hargen, foi trasladada para a Igreja de São Pedro de Alenquer, onde se encontra classificado como monumento nacional. Nas paredes laterais foi inserida a pedra com as armas de Damião de Góis, dadas pelo imperador Carlos V, as de Joana van Hargen, e o curioso epitáfio tumular de Damião de Góis, escrito pelo próprio em 1560, cerca de quinze anos antes da sua morte, com o busto e o texto em latim, cuja tradução reza assim:

«Deus omnipotente, Damião de Goes, cavaleiro lusitano fui em tempos; corri toda a Europa em negócios públicos; sofri vários trabalhos de Marte; as musas, os príncipes e os varões doutos amaram-me com razão; descanso neste túmulo em Alenquer, aonde nasci, até que aquele dia acorde estas cinzas" (5).

A Igreja de Santa Maria da Várzea foi, entretanto, recuperada, por iniciativa do Município de Alenquer, alberga na actualidade o Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição, onde está patente uma exposição permanente sobre a sua vida e obra (6).

Damião de Góis foi uma figura ímpar do renascimento português, como historiador e humanista, viajante e epistológrafo, diplomata e funcionário régio. Cultíssimo e de talentos multifacetados foi, igualmente amador de pintura, coleccionador de arte e compositor, tendo deixado algumas obras de natureza religiosa e profana. Contudo, apesar da sua superiora craveira, da sua sólida formação clássica e tendência cosmopolita, Damião não encontrou no ambiente português as condições para desenvolver o seu ideal de vida, acabando vilipendiado e esquecido durante vários séculos.

Quer prestar-lhe uma homenagem?

Sugiro que vá até Alenquer e visite o Museu que leva o seu nome.

Estou seguro de que não se arrependerá.

Referências:

· Wikipédia – Torre do Haver; Consultado a 15-01-2023;

· Wilson-Lee, Edward - A Torre dos Segredos, Bertrand Editora;

· Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Informações e Serviços; Consultado a 15-01-2023;

· As Tentações de Stº Antão – Tríptico; Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga;

· Wikipédia – Damião de Góis; Consultado a 25-01-2023;

· Museu Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição; Antiga Igreja de Stª Maria da Várzea, Alenquer. 

José Aleixo Dias

Lisboa, 25 de Janeiro de 2023