Clandestino... de férias

06-09-2022

De férias, passadas umas em destinos mais próximos, outras em locais mais longínquos, há sempre histórias de viagem para contar. Ocorre-me uma por mim vivida há exatamente quarenta anos que merece ser partilhada.

Fui criado literalmente num Aeroporto, o Aeroporto de Santa Maria, onde meu Pai começou a trabalhar para a Air France nos anos cinquenta, tendo transitado depois para a Sata quando a Air France, na senda da era do jato, deixou de precisar escalar aquela ilha para reabastecer os seus quadrimotores a hélice que até então cruzavam o Atlântico. Cresci assim junto de aviões e comecei a voar muito cedo para longe, beneficiando das facilidades concedidas aos funcionários das companhias de aviação, mesmo que sempre na contingência de não embarcarmos, o que acontecia com frequência, já que os ditos bilhetes não conferiam direito à reserva.

Daí a minha paixão pela aviação e quis o destino que mais tarde, como jornalista e noutras funções, tivesse que continuar a voar para todo o lado do mundo. Aliás a minha mulher diz que percebe porque me chamo Araújo e não Marujo, já que passo a vida no ar e não no mar.

O que não é exatamente verdade...

Seja como for, estava eu em Julho de 1982 na redação do Telejornal no Lumiar, onde então trabalhava, e recebi um telefonema do meu pai que vivia nos Açores, lembrando-me que ia fazer 25 anos em Setembro e que deveria aproveitar para fazer uma última viagem com bilhete grátis nesse Verão. Sugeriu-me que fosse à Air France na Avenida da Liberdade e visse com eles os destinos para onde voavam e lhe dissesse depois para onde e quando queria ir, para ele pedir o bilhete.

Ora naquele tempo não havia internet, nem telemóvel, nem cartão de crédito e ganhava-se pouco. Pensei logo no Japão que sonhava conhecer. Mas perguntei aos meus camaradas de redação se lhes fosse dada essa possibilidade que destino escolhiam. O meu vizinho de secretária e amigo, Pedro Luís de Castro, asseverou-me logo: "-O Japão deixa de lado, se queres conhecer o melhor exemplo do Oriente vai para a Tailândia"- de onde aliás ele regressara meses antes. Optei, pois, por Bangkok e fiz logo saber ao meu pai o destino escolhido. Lá veio na volta do correio o bilhete, de código um IDN2, Lisboa-Paris-Bangkok e volta. Fui à baixa comprar uma balalaica (para quem não saiba, camisa de quatro bolsos muito usada nos trópicos) à camisaria Moderna e dias depois o meu tio deu-me boleia para o Aeroporto. Levava um saco tipo mochila com uma muda de roupa, travel cheques no valor de 50 contos e ao pescoço pendurado um cartão plastificado com a minha identidade, tipo de sangue e telefones de urgência, nomeadamente o da Embaixada de Portugal em Bangkok, precaução para quem viajava sozinho para destino desconhecido no outro lado do mundo.

Em Paris, quando me dirigi ao check-in em Roissy, o funcionário da Air France disse-me logo que não havia lugares nessa noite. Lá telefonei de uma cabine ao meu amigo Edouard Guibert (jornalista já desaparecido), e que era ao tempo diretor de Informação da FR3, e pedi-lhe para me dar guarida por uma noite. Entretanto voltei ao balcão, e já em cima da hora de partida, o funcionário imprimiu-me o cartão de embarque, avisando-me que corresse para a porta que tinha havido um noshow (passageiro que desiste e não comparece ao embarque).

Meia hora depois estava sentado na fila do meio de um Jumbo a abarrotar, junto de uma família indiana que iria sair em Nova Delhi, onde o avião iria fazer escala em rota para Bangkok.

Cheguei no dia seguinte a Bangkok e fiquei em Sukumvit Road no Hotel Grace, um quatro estrelas simpático, também recomendado pelo Pedro, um single hotel (hotel de solteiros), coisa que se percebia logo pela movimentação no lobby nas vinte e quatro horas do dia...

Lá fiz todos os habituais circuitos turísticos,visitei o Buda de ouro, o de jade e o reclinado, e todos os magníficos templos, entre chuvas, calor e humidade da monção (na verdade o pior mês para se estar por aquelas paragens)...

Fui também de madrugada ao mercado flutuante e ao Rose garden, locais obrigatórios para o visitante. Fui também à nossa Embaixada (antiga feitoria Portuguesa e cujo terreno foi doado à Coroa Portuguesa em pagamento pela ajuda em armas e pólvora que teremos dado ao Sião naquelas eternas lutas deles com a Birmânia) visitar o nosso Embaixador, na altura o Melo Gouveia (também já desaparecido). Ele estava em Portugal, e jantei simpaticamente com o Chanceler, um Goês que nunca visitara Portugal e amava mais Portugal do que muitos Portugueses. Pediu-me na altura ajuda para o filho, que tocava magnificamente piano, poder ir estudar para Macau. O que fiz com gosto mais tarde, escrevendo ao Almirante Vasco Almeida e Costa, então Governador, e que eu conhecera quando jovem em Santa Maria, onde ele fora Capitão do Porto de Vila do Porto e mais tarde o reencontrei no Conselho da Revolução, quando eu por lá andava em reportagem.

E assim se foi passando a semana na Tailândia e gastando os travel checks, até que na sexta-feira, ou seja um dia antes do planeado regresso, fui ao escritório da Air France na baixa de Bangkok a ver como estava o voo do dia seguinte de regresso a Paris. A simpática menina, uma tailandesa, disse-me logo: -"Nem pense nisso..." está tudo overbooked com listas de espera enormes, nem vale a pena ir ao Aeroporto. Ora nesse dia eu já só tinha 50 dólares no bolso. Lá falei com o meu amigo chanceler que me sugeriu um YMCA junto do Aeroporto (lar de jovens em viagem) a dez dólares por dia, para o caso de ter que ficar em terra...

À cautela, no dia seguinte, cheguei ao Aeroporto muito cedo e fui logo inscrever-me, apesar da posição firme do oficial de terra da Air France que insistia que o voo estava cheio, mas se quisesse que falasse com o Comandante logo que este chegasse. Ataquei logo o comandante, mal ele saiu do minibus da tripulação e expliquei-lhe que tinha um IDN2 ( bilhete que não dá qualquer prioridade) mas que não tinha dinheiro para ficar em Bangkok. Ele simpaticamente explicou-me que já tinha o cockpit reservado para dois pilotos extracrew (tripulantes que precisam de voar para o destino para entrarem ao serviço noutro voo) mas que eu não deixasse o balcão até ao final do despacho de todos os passageiros. Milagrosamente de novo fui despachado em last min (última hora) com o alerta de que só tinha lugar até Bombaim escala usada no voo de regresso.

Embarquei e vim bem sentado até Bombaim, não obstante a enorme turbulência sobre o Golfo de Bengala da famosa intertropical. Aterrámos em Bombaim pela uma da madrugada. A tripulação anunciou que os passageiros com destino a Paris deviam aguardar nos seus lugares com o cinto desapertado durante o reabastecimento. Minutos depois chamaram pelo altifalante vários nomes, entre eles um Monsieur de nome Arujô mas que logo reconheci ser o meu...o que me fez enterrar na poltrona e cobrir-me com o cobertor, fingindo estar em sono profundo. De novo, o apelo pelo altifalante e ainda me cobri mais...

Pouco depois começaram a pedir os bilhetes aos passageiros e disseram-me o que não queria ouvir, teria de sair em Bombaim porque o voo estava cheio com passageiros confirmados.

Uma da manhã de um domingo, sem dinheiro e em Bombaim?...

Comigo estavam mais duas hospedeiras da Air France que tinham ido de férias para Phuket e um comissario da Air Inter, um negro simpático que tinha ido de férias para Sumatra, que tinha sido assaltado e tinha ainda menos dinheiro do que eu. Pedimos para falar com o Comandante que eu conhecera no Aeroporto de Bangkok. Ele veio até à galley onde nós aguardávamos em pé o nosso destino e disse-nos peremptoriamente:" -Se vocês desembarcarem ficam em Bombaim pelo menos uma semana, o Aeroporto está um caos...A bordo mando eu e portanto vão para as casas de banho fechem-se e só saem quando o avião estiver a rolar".

Lá me fechei tal como os outros numa casa de banho. Tentaram várias vezes abrir a porta falando em Indi. Presumo que seria pessoal a fazer a limpeza. Os minutos levavam horas a passar...Depois ouvi barulho de passageiros a entrar e no altifalante as boas vindas aos passageiros recém embarcados. De novo tentaram abrir a porta...

Quando os reactores começaram a trabalhar, pensei abrir a porta, mas lembrei-me que o Comandante Micael (assim se chamava ele e nunca o esquecerei) nos dissera:-" Só quando o avião estiver a rolar"...

Quando o gigante começou a rolar, abri a porta e saí. O avião estava às escuras para descolagem e não havia qualquer lugar livre, nem os de descanso da tripulação (no 747 costumava ser a última fila do avião reservada para o efeito. Agora têm no porão zona de descanso).Encontrei o meu companheiro de infortúnio, o homem que fora roubado em Sumatra. Perguntei-lhe:- e agora para descolar? Empurrou-me para o final do avião e desviou um cortinado onde guardavam os casacos da tripulação.Vamos aqui sentados, disse-me. E assim foi. Descolámos de Bombaim nesse armário aberto sem qualquer cinto de segurança.

Estou certo que isso hoje não seria possível e com os sistemas informáticos, facilmente seríamos identificados como clandestinos...

Quando o avião descolou, ficámos aliviados e com aquela excitação que se segue a uma descarga de adrenalina da tensão da última hora.

A tripulação foi inexcedível. Fomos ao cockpit agradecer ao comandante, e voltámos...para lugar nenhum.As hospedeiras precisavam de iniciar o serviço de jantar aos passageiros e as galleys estavam todas ocupadas. Não tinham refeição para nós, mas na verdade também não tínhamos onde comer. Quando terminaram o serviço, ainda faltavam umas seis horas para Paris e estávamos já esgotados de estar ora em pé, ora em períodos na casa de banho...

Quando toda a gente já estava a dormir ou a ver o filme projetado (os écrans individuais é coisa recente...) o Chefe de Cabine disse-nos para irmos para uma das galleys com bar aberto e aperitivos e umas sandes que tinham sobrado. Bebemos umas quantas miniaturas e umas flûtes do champanhe francês que nos fizeram chegar vindo da primeira classe.

Cheguei de madrugada a Paris.

Quando vi o oficial da Polícia de fronteiras fresco e barbeado, de farda imaculada e a carimbar-me o passaporte, apeteceu-me dar-lhe um abraço.

Senti-me seguro e em casa.

Lisboa, Agosto de 2022

Lopes de Araújo



Fotografia de Lopes de Araújo