A neve caiu na ilha!

06-01-2022

Todos os anos havia uma perda.

Este ano fora o pastor. Ao ser cuidadosamente desembrulhado da folha de jornal que o rodeava, as crianças depararam com ele decapitado. A cabeça do pastor, que durante tantos anos e em posição cimeira guiou o rebanho equilibrado numa pedra no meio do musgo, esboroara-se literalmente. O resto do corpo intacto deixava no pescoço a fratura exposta no barro vermelho que a pintura exterior cobrira todos esses anos. Da cabeça pouco restava. O pastor tinha nome, tal como todos os bonecos do Presépio. Este era o Bernardino, homenagem ao queijeiro que todas as semanas descia à vila a cavalo e batia à porta, a oferecer queijos de cabra frescos e a saborosa manteiga amarela caseira de Santo Espírito, tudo feito na serra, como eram chamadas as freguesias para lá do Pico Alto que cortava a ilha em duas. Uma rural e a outra urbana, esta composta pela Vila e pelo Aeroporto.

As crianças rodearam o irmão debruçando-se sobre o que restava do Bernardino. Não havia cola que o salvasse. A Belinha ainda propôs que o Bernardino fosse assim mesmo sem cabeça para o Presépio, mas os irmãos recusaram e sugeriram ir à Vila à procura de outro pastor, talvez na papelaria ainda houvesse algum à venda, se bem que já só faltassem dois dias para o Natal e na ilha todas as novidades desapareciam rápido das lojas.

O João Manuel, o mais velho, conduzia todos os anos a operação de montar o presépio ajudado pelos dois irmãos mais novos. O Pai fazia hoje o turno da noite no aeroporto e só voltava a casa de manhã, decerto ainda eles estariam a dormir. A mãe ocupava-se da cozinha, de onde já chegava o cheiro encantado de bolos para as festas.

A árvore e o presépio, essas eram tarefa só das crianças. E como gostavam eles, uma vez por ano, dessa tarefa sempre tão esperada!

O Francisco era o mais endiabrado dos três miúdos. Chegou junto da árvore com dois postais de Natal que os Pais tinham recebido da família da América. Eram postais magníficos, nada comparável àqueles que se compravam por cá na papelaria, com a esbatida figura do menino Jesus na manjedoura.

Estes eram grandes, de cartão fino e bordado, abriam em par e do meio saíam articuladas as árvores cobertas de neve, as paisagens com casas mágicas e figuras de crianças a patinarem no gelo. Tudo polvilhado de tinta dourada ou prateada que deixava os dedos a cintilar, enquanto emanava um perfume único que nunca percebiam se era do papel ou se havia algum secreto odor a pairar mesmo naquela imagem em relevo. Eram os postais da América.

Então e se puséssemos neve na árvore e no Presépio? -perguntou o Francisco. O irmão mais velho explicou o que todos sabiam -isto aqui não é a América e não há neve nas ilhas. Era verdade, mas todos tinham pena de nunca terem visto neve. O mais parecido com a neve dos postais americanos, era aquela brancura do nevoeiro cerrado que começava por cair esparso pelo São João em junho, envolvendo do Pico Alto ao Pico do Facho e raras vezes descendo à planície, cobrindo tudo e todos naquelas nuvens de algodão. Mas não era igual à neve dos postais...

Desistiram rápido da ideia e concentraram os esforços no desembrulhar das restantes figuras do presépio, na montagem das casas de cartolina pintada e no equilíbrio difícil dos pedregulhos que compunham a gruta.

A mãe Berta acabara o trabalho, quando bateram à porta já noite dentro. Chegou à janela da cozinha e viu que era a Dona Augusta. Dona Augusta era uma vizinha temida lá em casa e nos arredores. Era uma Senhora de idade incerta, enviuvara cedo de um Sargento da guarda que morrera ainda novo de apoplexia. Era pouco simpático, muito sanguíneo, gordo e baixo, a farda saía-lhe pelo cinturão preto e arrebitava-lhe os colarinhos quando passava na rua a caminho da esquadra. A morte, apesar de tudo, entristecera o bairro. Mas Dona Augusta rápido se refez do desgosto. Não tinha filhos, ainda andaria nos cinquenta e entregou-se então à igreja e às suas obras. Era das Irmãs de São Vicente de Paulo e do hábito de Nossa Senhora do Carmo, assistia à missa diária e dava catequese aos miúdos. Mas paradoxalmente, tal religiosidade não correspondia à forma como se apresentava. Era exuberante no pó de arroz e no batom vermelho forte. As crianças que tinham andado na catequese dela chamavam-na, vá-se lá saber porquê...a Bela Coisa. Raio de nome que de bela nada tinha. Nunca usara preto nem no luto. A viuvez fugira-lhe para a barriga, diziam. Devorava doces e chocolates e corria no Natal a vizinhança toda a dar as Boas Festas, aproveitando um docinho aqui, um pudim acolá. Não era má pessoa, mas o que a fazia temida, era uma incontrolada incontinência verbal. Dona Augusta quando começava a falar, não parava. Falava do tempo e da Igreja, do Padre e da sua mãe, fazia as perguntas e dava as respostas. E quando se pensava que ia parar ...logo recomeçava, passando à análise da vizinhança, um por um, cuscando e falando de tudo e de todos, ponteando os relatos com um doce de ovos, um sonho, uma baba de camelo ou só um bocadinho...dizia, de arroz doce, e reafirmando vezes sem conta que não gostava de falar da vida dos outros, logo abafando com um - Deus me perdoe!

Dona Berta hesitou em abrir a porta à Bela Coisa. Mas Dona Augusta insistia batendo mais forte e as luzes da casa estavam acesas...enfim, foi abrir.

A criançada correu a esconder-se da Bela Coisa e depois ficaram a espreitar no chão por debaixo do cortinado. Coisa de miúdos. Dona Augusta, a Bela Coisa, estava mais espampanante do que nunca, parecia um personagem saído de um filme de matiné infantil: muito gorda de tanto doce, o cabelo pintado de L'Oréal muito louro, os lábios pintados como habitualmente, os óculos fortes alojados nas curvas das bochechas empoadas, e a cobrir toda ela um enorme casaco de pelo branco que lhe comprara o falecido, quando fizeram vinte anos de casados, numa ida sua a Barcelona. Seria pelo verdadeiro ou sintético? Dona Berta não sabia. As crianças olharam espantadas para a Bela Coisa, esta "Cruela" simpática, em versão extra-large e de Natal.

Dona Berta sentou-se ao lado da visita na sala. O rádio estava aceso dando um programa de discos pedidos. Veio o licor de laranja e os coscorões, outros fritos e o bolo de ananás e Dona Augusta não se fez rogada. Falou das doenças que não tinha e das que tinha medo de ter, da igreja e das obras, da quermesse e de como ninguém a ajudava e começou a passar em revista a vizinhança. Dona Berta ainda tentou articular uma palavra, enfim dizer alguma coisa..., mas já Dona Augusta falava da vida de um e de outro, dos pequenos escândalos e do que cada um comprara para o Natal. Um a um, os miúdos esgueiraram-se sorrateiramente por detrás do cortinado, passaram entre a parede e a Bela Coisa e esconderam-se atrás do sofá. A mãe Berta ainda tentou arregalar-lhes os olhos, mas esses pesavam-lhe muito de um dia de trabalho, de tanto tempo na cozinha e a voz de Dona Augusta ao fundo, monótona, repetitiva, igual...

Deu uma cabeçada, a seguir mais duas e sentiu o sono invadi-la. Mas Dona Augusta parecia não a ver sequer, continuava a falar sem parar, já batera há muito a meia noite no relógio de cuco da cozinha. Até que a própria Dona Augusta, a Bela Coisa, adormeceu também, e só perto das duas da manhã acordou com o seu próprio ressono, estremecendo por debaixo das sedas apertadas. -Ah Dona Berta tão tarde já!...

Despediram-se as duas ensonadas com um Bom Natal pouco entusiasmado.

De manhã, Dona Berta levantou-se mais tarde, nem sentira o marido chegar de madrugada.

Era véspera de Natal e não havia muito para fazer. Deixara já tudo pronto. Levantou-se, e de roupão vestido entrou na sala para levantar a loiça, deixada do dia anterior, da visita da Bela Coisa.

Ficou parada à porta, incrédula. Presépio e árvore de Natal estavam cobertos de neve, tal e qual os postais da América.

Ainda espreitou por detrás do sofá onde se sentara a Bela Coisa, apenas para confirmar a suspeita. No chão estava um pequeno monte de pelo branco.

Sobras da neve que caíra durante a noite!...

Lopes de Araújo