Poesia # 90 - Caixinha de memórias

01-11-2023


Viro a esquina
Os estores corridos, já faz 3 anos
A fechadura nas voltas
A escuridão no interior da casa

Tudo tão parado, tão sem graça, tão sem vida
Falta a coragem de "dar a volta às coisas"

Nos armários, as loiças bonitas usadas nos diversos Natais
Nas gavetas, as toalhas de mesa bordadas
Na arca de canfora, religiosamente guardados, os nossos dentes de leite
No topo, as molduras com fotos de família

Olho ao redor, nem sei por onde começar
Mas tem de ser …
Vamos lá arregaçar mangas e "dar a volta às coisas"

Remexo a escrivaninha e lá estão os desenhos dos netos
Miminhos ofertados nos Dias da Mãe e do Pai
Postais ilustrados em fundo cor de rosa
Com rostos cinéfilos e mensagens lindas
Misturados com pagelas e recortes de jornais

E agora, como é que eu vou "dar a volta às coisas"?

As tiras em crochet que ficaram por unir
Os terços na mesa de cabeceira, recordações de Fátima
Os passeios corporizados em peças de cerâmica
Os fatos que não servem há anos, mas continuam pendurados

Não, ainda não é hoje que vou "dar a volta às coisas"

Viro costas para me ir embora
Decidida a voltar noutro dia
Mas uma pequenina caixa
Atravessa-se à minha frente
E pede-me para a levar

Em alumínio, retangular, com tampa,
Onde as agulhas de seringa eram guardadas
Envoltas em algodão, embebido em álcool

A minha memória foi então invadida
Pelo calcorrear pelas ruas da Graça
Até casa dos que necessitavam de injeções
Para alívio das suas maleitas

Aproveitávamos para conversar
E partilhar as novidades do dia
Eram assim os nossos fins de tarde
Antes de regressar a casa para fazer o jantar

Tão singelo pedido não posso recusar
E para guardar os doces momentos
Ainda hoje a pequena caixinha vou comigo levar

Quanto ao dar a "volta às coisas"
Voltarei noutra hora
Mas terei então de ter o cuidado
De, nessa vez, deixar o coração lá fora